Minissérie rima emoção com conteúdo

Por Luiz Zanin Oricchio* A minissérie Hoje É Dia de Maria destoa tanto da programação habitual da TV que chega a deixar o crítico …

Por Luiz Zanin Oricchio*
A minissérie Hoje É Dia de Maria destoa tanto da programação habitual da TV que chega a deixar o crítico até sem parâmetros para compará-la com outras atrações do gênero. Mais ainda pelo fato de, na grade de horário, ser antecedida por esse exemplar bovino de entretenimento que é o Big Brother Brasil., Assim, à futilidade, ao narcisismo e ao roça-roça bocó do BBB segue-se a sutileza criativa e cheia de conteúdo de Hoje É Dia de Maria. Como se a Globo estivesse dizendo: "Sou capaz do pior, e do melhor também." Num momento em que a Rede tem mostrado seu poder de pressão sobre temas que lhe dizem respeito, como a Ancinav, essa não deixa de ser uma mensagem interessante.
Hoje É Dia de Maria parte de uma concepção formal das mais interessantes. Gravada num Domo, com 1.700 metros quadrados de cenários pintados à mão, a minissérie aposta na deslavada artificialidade para comover o público. Como? Exatamente, vai do falso para chegar ao "verdadeiro". Como procedimento não é novidade. Alain Resnais fez isso algumas vezes, em Mélo e em Smoking no Smoking, por exemplo.
Cenário deliberadamente fake. Comovedoramente falso, melhor dizendo. Fellini fazia do procedimento um hábito, como em E la Nave Va, Casanova, Satyricon e vários outros filmes. Ou seja, a opção é abandonar a imitação da realidade por um artificialismo ostensivo.
Esse procedimento de exposição da construção dramática não se limita aos cenários. O clima é fabular, as falas são recitadas, busca-se uma prosódia implausível dos atores. Maria, interpretada quando criança por uma surpreendente Carolina Oliveira, se move num universo de fábulas e mitos, brasileiros e universais. A profusão de referências é enorme, vão de Câmara Cascudo e Silvio Romero a Villa-Lobos, mas basta dizer que a pequena Maria faz-se protagonista de um arquétipo comum da humanidade, a viagem, presente desde a Odisséia de Homero. Ela é a garota órfã de mãe, que sofre com a madrasta e resolve botar o pé na estrada e ir em busca das "franjas do mar". No percurso, arruma amigos, sofre a tentação do demônio e vira moça, quando então passa a ser interpretada por Letícia Sabatella.
Na minissérie, a infância é vista com todos os seus medos e sentimentos de impotência como nas antigas fábulas. Há bruxas como a Madrasta (Fernanda Montenegro) e demônios de muitas faces (a figura do Mal é interpretada ora por Stênio Garcia ora pelo sedutor João Sabiá, em vestimenta hispânica e devidamente acompanhado pela música do Toreador, de Bizet). Mas há também as figuras benignas como as vividas por Gero Camilo. O pai (Osmar Prado) é um personagem trágico, dilacerado entre o amor e o desejo pela filha, corroído pelo remorso, tentado pelo suicídio. Sim, a minissérie não deixa de lado nem mesmo essas milenares figuras edipianas.

E assim, nessa viagem de Maria, ela será obrigada a enfrentar uma tentativa de estupro, os abusos da madrasta e as tentações do Asmodeu. E seguirá seu passo com alegria e inteligência. Refaz, em seu caminho, os diversos ritos de passagem, como a saída de casa e a puberdade. Esta cena, aliás, quando vítima da aceleração do tempo causada pelo demônio ela prematuramente se torna mocinha e menstrua é uma das mais bonitas e emocionantes da série.
Luiz Fernando Carvalho foi acusado de fazer cinema na TV em Os Maias, outra minissérie, de resto excelente também. Agora vai além no processo de radicalização - faz alguma coisa entre o cinema e a TV, mas que também incorpora o circo, a commedia dell´arte, a brincadeira de rua. Como alguns (poucos) artistas, como Antonio Nóbrega, ou Ariano Suassuna, Carvalho, a partir do roteiro deixado por Carlos Alberto Soffredini e retomado por Luis Alberto de Abreu, também faz a síntese sempre interessante entre o erudito e o popular.
No BBB há um simulacro de verdade onde no fundo tudo é falso. Em Hoje É Dia de Maria parte-se da falsidade de cenário e entonações para se chegar se não à verdade, já que esta é difícil de ser atingida, mas pelo menos à emoção e a sinceridade. Não é nada modesto como projeto.
* O artigo foi originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 18/01/2005.

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