A imprensa brasileira e os contextos de crise política

Arthuro Luiz Grechi de Carlos e Guilherme Kichel de Almeida, para Coletiva.net

A historiadora Emília Viotti da Costa, na introdução de seu brilhante livro: 'Coroas de Glórias, Lágrimas de Sangue' se vale de elegante epígrafe para definir conjunturas em que as relações sociais são tomadas pela instabilidade: "Crises são momento de verdade", delineia a autora. Ou seja, são nessas oportunidades que podemos perceber com mais clareza as diferenças e contradições presentes num determinado corpo social, visto que, em tempos mais calmos, a tendência é que essas diferenças permaneçam escondidas em nome da manutenção da estabilidade.

Dentre os bons potenciais que a frase citada nos permite está o de utilizá-la para melhor entender diferentes contextos históricos. Visto o objetivo do presente artigo, de comparar o papel da imprensa brasileira no atual momento político, pós golpe desde o golpe de 2016, com o papel no cenário do golpe civil-militar de 1964, a categórica afirmação serve de boa chave explicativa.

Em 1º de abril de 1964, o Brasil acordou com seu presidente eleito, João Goulart, deposto pelo Exército brasileiro, num golpe de Estado apoiado por importantes setores da sociedade. Entre eles estava praticamente toda a chamada 'grande imprensa' com importante exceção do jornal Última Hora, de perfil nacionalista e legalista, comandado por Samuel Wainer. Em jornais como O Globo, de 02/04/1964, lia-se, em cima do título da Capa: 'Fugiu Goulart e a democracia está sendo restabelecida' e, mais abaixo, o editorial: 'Ressurge a Democracia!'. Outro importante jornal do Rio de Janeiro, O Dia, em 03/04/1964 exibia em sua primeira página: 'Fabulosa demonstração de Repulsa ao Comunismo'.

Esses exemplos, que poderiam ser ampliados, revelam a tomada de posição dos principais meios de comunicação brasileiros em apoiar a levante contra o presidente Goulart. Temerosos da aproximação de 'Jango' com ideias cada vez mais à esquerda, com as chamadas 'Reformas de Base', que pretendiam, a partir de tendências nacionalistas e de justiça social, trazer mudanças em setores como o fiscal, administrativo e educacional, os órgãos de imprensa, na voz de seus proprietários, definiram-se como contrários ao governo.

Postura que, além de demonstrar a linha que seria seguida por esses jornais durante o regime civil-militar, que duraria ate 1985, também explicitou uma verdade sobre esses veículos jornalísticos, que eles procuram seguidamente esconder: de que também agem de forma política e ideológica. Portanto, apesar de professar uma prática jornalística pautada por uma pretensa 'isenção', a grande imprensa brasileira, devido às características peculiares das normas e regulamentações dos meios de comunicação no Brasil, que permite a formação de oligopólios, foi e é um ator importante nos cenários de crise política nos quais as instituições estiveram ameaçadas.

Podemos afirmar que o que vimos em 2016 guarda semelhanças tanto com o caso de 1964, quanto com outros episódios como, por exemplo, a crise do governo Getúlio Vargas, em 1954, que culminou no suicídio do presidente: nessa ocasião, o porta-voz da oposição antigetulista era o jornalista e político brasileiro Carlos Lacerda, que se utilizou de seu Tribuna de Imprensa para veicular todo tipo de denúncias e acusações contra Vargas, sendo as mesmas fundadas ou não.

Essa prática, diga-se de passagem, que carrega os piores vícios possíveis e infringe os princípios éticos da profissão, pautou muitas vezes a atuação dessa imprensa oposicionista e fomentadora de golpes. Podemos considerar a sua principal representante, nos dias atuais, uma notória publicação semanal, em revista, que, abertamente identificada com um partido político, já vem fazendo história (enquanto exemplo clássico de mau exercício do jornalismo) com suas capas tendenciosas e, quando não, mentirosas, com o único e exclusivo fito de atuar como veículo de notícias deturpatórias contra seus opositores e de alavancar a ascensão das forças políticas com as quais estão alinhados.

Já que falamos en passant sobre a prática jornalística, o manual da boa prática do ofício de historiador nos adverte para, sempre que nos aventurarmos em uma análise comparativa, termos precaução em relação aos anacronismos, sob o risco de cometermos imprecisões e formularmos hipóteses infundadas. Assim, é necessário lembrar que os contextos atuais e do golpe de 1964 apresentam muitas dessemelhanças, mas guardam também pontos em comum. Um deles é, justamente, a participação da imprensa, ainda que esta participação possa ter se dado de maneiras diferentes.

Se considerarmos o golpe de Estado como um processo que não se encerrou com o impeachment sofrido pela presidenta Dilma Roussef e estendermos o escopo da análise para 2017 e 2018, levando em conta a atuação da grande imprensa na veiculação de notícias sobre o processo judicial sofrido pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, é possível visualizar com mais clareza a atuação comprometida e parcial de boa parte da grande imprensa brasileira. Como não poderia deixar de ser, essa atuação, em nossa opinião, teve papel importante na moldagem da opinião pública sobre a condenação e prisão de uma figura tão importante na história do país, podendo, assim, ser considerada uma das fiadoras do golpe que a democracia brasileira vem sofrendo desde, pelo menos, 2016.

Portanto, precisamos urgentemente repensar os nossos marcos regulatórios sobre os órgãos de imprensa. Enquanto isso não ocorrer, nossa democracia continuará sofrendo a desestabilização trazida pela atuação de uma imprensa dominada por oligopólios, que colocam seus interesses de classe acima de tudo: da ética, das instituições democráticas e do estado democrático e constitucional de direito.

Arthuro Luiz Grechi de Carlos é mestre em História pela Ufrgs e professor da rede privada em Porto Alegre, e Guilherme Kichel de Almeida é mestre em História pela Ufrgs.

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