A mídia e o poder

Por Júlio Mariani A resistência à ditadura militar foi feita de pequenos e grandes gestos, segundo as possibilidades pessoais, o grau de engajamento político …

Por Júlio Mariani
A resistência à ditadura militar foi feita de pequenos e grandes gestos, segundo as possibilidades pessoais, o grau de engajamento político e a consciência histórica de cada um. Houve pessoas que abrigaram em suas casas um ou mais perseguidos pelo regime, outras que eventualmente levaram mensagens de um grupo de clandestinos para outro, outras ainda que, embora simpatizantes do governo militar, contribuíram com o seu silêncio ao ficarem conhecendo, por acaso, nomes de guerrilheiros e locais de funcionamento de "aparelhos" de combate à ditadura. Questão de caráter, pois a delação é sempre atitude que enoja os bem formados.
O livro do jornalista Lauro Schirmer intitulado RBS: da voz-do-poste à multimídia, há pouco lançado pela L&PM, narra vários episódios de veículos de comunicação e jornalistas dessa e de outras empresas envolvendo a difícil convivência com o sistema ditatorial implantado a partir de 1964 e sobretudo a partir de 1968, com a edição do Ato Institucional nº 5. Em um dos capítulos que chamou de Histórias Nunca Contadas, Lauro revela em detalhes a "altiva retirada" do QG do III Exército protagonizada pelos presidentes da RBS, Maurício Sirotsky Sobrinho, e da Cia. Caldas Júnior, Breno Caldas.
Justamente com outras lideranças gaúchas, Maurício e o dr. Breno tinham sido convocados pelo general Antonio Bandeira ao salão nobre do QG. Comandante do III Exército na época, agosto de 1980, o general pretendia que os empresários sufocassem economicamente as iniciativas editoriais da Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, negando-lhe os anúncios que ajudavam a sustentar o Coojornal e o Ano Econômico. Maurício não quis sequer ouvir os demais assuntos da pauta. Levantando-se, disse que se retirava pois o tema em questão não lhe dizia respeito. Breno Caldas foi solidário e se retirou junto com o presidente da RBS.
Era difícil prever então as conseqüências de gestos desse tipo, embora em 1980 já fosse presidente da República o general João Figueiredo, afinal responsável pela ampliação do processo de abertura política iniciado por seu antecessor, general Ernesto Geisel. Quem conhece a importância de uma imprensa livre sabe que seria insuportável para homens com fibra jornalística tolerar mais aquela tentativa de controle da liberdade por parte de um agente da ditadura. Maurício Sirotsky Sobrinho e Breno Caldas, para orgulho do jornalismo gaúcho, fizeram o que tinham de fazer.
Resistir ao autoritarismo com os meios ao seu alcance é obrigação de todo verdadeiro democrata. Foi a soma das atitudes de resistência interna, ao lado das pressões internacionais, que acabou com os anos de chumbo na América Latina.
É preciso levar em conta, no entanto, que nem sempre a censura à independência dos meios de comunicação é tão clara e assumida quanto nos regimes abertamente ditatoriais. Governos democraticamente eleitos podem atuar de forma bem mais sutil - embora insistente - para tentar obter uma espécie de consenso em seu favor, como se fossem donos de uma verdade revelada pelos deuses. Por isso é essencial para as democracias contar com uma imprensa livre, que mantenha isenção diante de todas as correntes políticas.
* Jornalista. Artigo publicado em Zero Hora de 01/11/2002

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