Hitler não triunfará

Por Alberto Dines Não é o editor nazista Siegfried Ellwanger que está sendo julgado no Supremo Tribunal Federal, é o próprio nazismo. Quem colocou …

Por Alberto Dines
Não é o editor nazista Siegfried Ellwanger que está sendo julgado no Supremo Tribunal Federal, é o próprio nazismo. Quem colocou a questão nesses termos foi o ministro Carlos Britto, recém-nomeado pelo presidente Lula, ao proferir quarta-feira o seu voto num caso que fatalmente será incorporado aos anais internacionais dos Direitos Humanos.
O réu e seus advogados pretendiam provar que anti-semitismo não é racismo, crime que nossa Constituição considera inafiançável e imprescritível. Por isso, pleitearam um habeas-corpus em nossa corte suprema depois de fragorosas derrotas em todas as instâncias. O ministro Britto foi mais longe ao validar e endossar as solertes e insidiosas falsificações oferecidas aos incautos pelo editor Ellwanger.
Um tribunal constitucional é um fórum privilegiado para discutir princípios, estabelecer paradigmas e firmar jurisprudência. Foi imprudente o ministro Britto ao aventurar-se numa disciplina onde se mostra rigorosamente neófito. Neófito e arrogante, porque ainda não apareceu entre nós algum estudioso qualificado e isento capaz de negar com tamanha veemência e desfaçatez os horrores do Holocausto.
Estribado nas 86 citações que conseguiu contar numa das obras da lavra de Ellwanger, o meritíssimo considera-se credenciado para proferir um voto que certamente não lustrará o seu currículo jurídico e poderá colocá-lo como adepto de uma doutrina política que contraria frontalmente as convicções e a biografia daquele que o indicou para a suprema magistratura.
Caso não tenha lido, este articulista prontifica-se a oferecer-lhe exemplares da recém-publicada A Assustadora História do Holocausto , de Michael Marrus, uma das maiores autoridades mundiais na matéria (Editora Prestígio-Ediouro, 432 páginas) e do terrível documento sobre a Reunião de Wansee coligido por Mark Roseman, Os Nazistas e a Solução Final (Zahar, 165 páginas). Poderão inspirá-lo senão para uma revisão de voto pelo menos para um exame de consciência.
O ministro Brito não compreendeu que a "novidade" do neonazismo consiste apenas em negar as barbaridades cometidas pelos antecessores, os protonazistas. De resto, velhos e novos hitleristas, fascistas maduros ou imaturos, aqui ou acolá, todos totalitários, defendem as mesmas causas e perseguem os mesmos objetivos.
Não há diferença entre os anti-semitas de antanho e os anti-semitas de hoje - quaisquer que sejam os seus disfarces. O anti-semitismo é um racismo milenar que encontrou sua expressão política no pangermanismo, no fascismo, no nazismo e, agora, no terrorismo islâmico. Para que não produza um banho de sangue igual ao de 1933-45 é imperioso mantê-lo isolado, como patologia política, psíquica e moral.
Evidentemente despreparado para entrar no mérito de uma obra que sequer estava em discussão, o ministro Carlos Britto não percebeu a dimensão do caso nem avaliou que este já é um dos "julgamentos históricos" do STF: arrasta-se há nove meses, foi interrompido quatro vezes, completará um ano e certamente terá repercussão e desdobramentos em escala mundial.
Ao manifestar-se, não lembrou que o voto do relator, embora com formulações diferentes, foi idêntico ao seu. Acontece que Moreira Alves era o juiz remanescente do regime militar e ele, Carlos Britto, é (ou deveria ser) o representante de um Brasil novo, sem medo, pleno de esperanças, tolerante e harmonioso. Apostou numa causa duplamente perdida: o nacional-socialismo foi batido em 8 de maio de 1945 e o editor Ellwanger está praticamente condenado.
Erro maior foi a tentativa de borrar as diferenças entre fato e opinião, deixando de lado a verdade factual e sujeitando-se a falsificações históricas deliberadas. Deveria lembrar-se da famosa frase de George Clemenceau depois de selada a paz em Versalhes: "Não sei o que dirão os historiadores no futuro sobre o início da Guerra, mas posso garantir que ela NÃO começou por que a Bélgica invadiu a Alemanha?"
Resta muita coisa a esclarecer sobre a incrível ascensão de Hitler em 1933 e os antecedentes da Segunda Guerra Mundial. Porém, uma coisa é certa e o ministro Brito não deveria ignorá-la: NÃO foram os judeus que inventaram o Holocausto. Os judeus foram as suas vítimas, e em proporções jamais igualadas na história da humanidade.
E porque o anti-semitismo ainda não foi extirpado e continua tão letal quanto antes, Sérgio Vieira de Mello incluiu-o num pronunciamento em Viena, perante o International Press Institute, em novembro passado: "Existem obrigações legais e internacionais, aceitas pela maioria dos Estados, que proíbem o incitamento ao ódio racial, étnico e religioso e também o anti-semitismo".
Sérgio Vieira de Mello, o funcionário da paz, foi enterrado quinta-feira. Não podemos esquecer aquele que mostrou ao mundo a nobreza brasileira. Quanto a Carlos Britto, melhor ignorar que um dia antes nos vexou oferecendo seus préstimos à memória de Hitler.
* Alberto Dines é jornalista e diretor do Observatório da Imprensa.

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