Notícia aos titulares de ilusão

Por Luciano Martins Costa A desembargadora federal Alda Basto, do Tribunal Federal da 3ª Região, produziu, na quinta-feira (24/7), uma peça inspiradora ? para …

Por Luciano Martins Costa
A desembargadora federal Alda Basto, do Tribunal Federal da 3ª Região, produziu, na quinta-feira (24/7), uma peça inspiradora - para a análise da crise da imprensa e das angústias dos jornalistas - ao determinar efeito suspensivo em parte à decisão da juíza Carla Rister, que havia no ano passado eliminado a exigência de diploma universitário específico para o exercício do jornalismo. Diz a desembargadora, ao reinstaurar a exigência do diploma, que a possibilidade de emissão de títulos de jornalista em caráter precário para quem não tem diploma, produzida pela decisão anterior da juíza Rister, estava criando "titulares de ilusão".
Não vamos aqui embarcar na discussão histérica que se seguiu à decisão da desembargadora, dado que os fóruns de debate na internet já se entupiram desde sexta-feira (25/7) com as manifestações destemperadas de ambos os lados da questão. Havia, entre os debatedores, até mesmo um cidadão que, não tendo completado o segundo grau e pontuando suas diatribes com manifestações de pouca familiaridade com o idioma e o bem-pensar, afirmava-se jornalista sob qualquer circunstância legal. O homem diz que é jornalista e assim o deixemos. E voltemos ao que isso tem a ver com a crise da imprensa.
Vem aqui ao caso, a questão do diploma, porque é parte essencial dos descaminhos que levaram as empresas de comunicação brasileiras ao beco em que se encontram. Essa discussão começou na Alameda Barão de Limeira, no bairro de Campos Elísios, em São Paulo, quando, em meio ao turbilhão do "Projeto Folha", percebeu-se nas contabilidades da empresa que a profusão de guias e roteiros criados com o novo modelo representava um custo não previsto de mão-de-obra, pela necessidade de alocar um número maior de jornalistas para tarefas simples como checar endereços de restaurantes e horários de filmes. O Sindicato dos Jornalistas estava em campanha por reajuste salarial. E alguém alegou que o diretor-responsável do jornal não tinha diploma de jornalista.
Foi o estopim desse debate sem nobreza. Alguns acadêmicos ansiosos por espaço na mídia levantaram a tese da liberdade de acesso aos meios de comunicação, aplicando ao quadro um verniz de legitimidade que não resistiria ao arranhão de um urso de pelúcia. Afinal, disse alguém naquela ocasião, se a imprensa é um serviço privado de interesse público, alguma regulamentação há de haver, na defesa desse alegado interesse público. Se é apenas um negócio privado, torna-se inócua a argumentação da liberdade de acesso - o dono escolhe quem vai escrever em seu jornal, e dane-se a freguesia -, mas suspendam-se os benefícios fiscais.

Num arroubo de destempero adolescente, decidiu-se que aquela casa editora não levaria em conta a determinação legal para escolher seus jornalistas. A questão foi levada à Associação Nacional de Jornais e se tornou a raiz de debates impertinentes.
Reinvenção da imprensa
Muita tinta se gastou para justificar a rotina de ilegalidades que se seguiu, uma vez que os editores mais empenhados em agradar o patrão passaram a convidar para funções nobres sociólogos, advogados, curiosos de origens variadas, desde que representassem o novo modelo estético e ideológico que o "projeto" recomendava.
No auge da "revolução cultural" que varreu a Barão de Limeira, ocupou a secretaria de redação um profissional que havia freqüentado a universidade por uma década, migrando de curso em curso sem concluir nenhum deles. Uma editora, sem diploma de jornalismo, que dirigiu um dos jornais do grupo, tem em seu currículo a prática de execrar vítimas de crimes violentos - todas elas de famílias sem recursos - exibindo fotos grotescas de seus cadáveres ao lado de legendas de gosto medonho, do tipo "morreu com a boca cheia de formiga". Em mais de uma ocasião, familiares de jovens assassinados na periferia da cidade plantaram-se na calçada em frente ao jornal para pedir retificação das escolhas dessa editora, na esperança de restituir um pouco da dignidade roubada ao ente perdido. Estão nos arquivos os resultados dessa prática, que qualquer estudante de primeiro semestre, na pior das escolas de jornalismo, aprende a evitar. A editora, que seguiu praticando e cumpre brilhante carreira, tem em seu currículo um diploma de socióloga.
Há também bons praticantes de jornalismo sem o diploma, assim como há os maus jornalistas com o diploma específico. Mas sabemos, como disse Shakespeare pela boca de Marco Antônio, que "o mal que os homens fazem vive depois deles; o bem é muitas vezes enterrado com seus ossos". E o debate ocioso se tornou questão de segurança nacional, a tal ponto que o diploma dos jornalistas chegou a ser apontado como ameaça à democracia. Logo o diário Zero Hora, de Porto Alegre, se apossou da bandeira, acirrando uma disputa antiga com o sindicato local de jornalistas, e o tema acabou alcançando O Globo, embora com menor intensidade.

Paralelamente, as redações foram se descaracterizando, na medida em que profissionais sem a base de conhecimentos adequada foram elevados aos cargos de mando e se dedicaram a reinventar a imprensa.
Referenciais diluídos
São dessa safra as práticas do texto sem compromisso com a História, da reportagem sem testemunho, da acusação transformada em julgamento, da mistura perversa entre marketing e notícia. É dessa safra a morte da língua culta nas redações, a mania dos rankings e das estatísticas manipuladas, a resignação ao empobrecimento cultural, a renúncia à vanguarda do processo de formação do ethos nacional.
É desse tempo também a mania de buscar a objetividade onde não se pode encontrar, afirmando-se que havia acabado o tempo do jornalismo "romântico", do texto jornalístico fundado em boa literatura. Dizia-se, então, que a objetividade enterraria o "jornalismo impressionista".
(Não é piada: irritado com o desencontro entre os números anunciados por autoridades e a percepção dos repórteres, um desses editores mandou medir a Praça da Sé, em São Paulo, depois calculou quantas pessoas caberiam em cada metro quadrado e determinou que, nas manifestações públicas, o número oficial de manifestantes seria definido pela equação resultante da área ocupada pela densidade humana observada nas fotografias do dia. Um jornalista - diplomado - deu o tom: não seria mais prático contar as orelhas e dividir por dois?)
Não há duas trajetórias para que se possa afirmar que teria sido outra a história da imprensa nacional se essa ruptura não se tivesse produzido. Mas sabemos que a junção de curiosos apadrinhados com profissionais acuados pela falta de perspectivas produziu uma homogeneidade que inibiu os debates internos nas redações. Sabemos que esses debates são a alma do jornalismo: no cafezinho se fazia a avant-première do que a

sociedade discutiria no dia seguinte. Sabemos também o que houve: nos

últimos vinte anos, a imprensa optou por cumprir papéis secundários quando mais o país precisava de liderança, escolheu agradar o cliente quando era preciso educá-lo para a democracia.
A oportunidade substituiu a estratégia, o deadline substituiu o senso de responsabilidade, a frase de efeito tomou o lugar do título preciso. Perdeu-se a noção do "DNA da História", os referenciais se diluíram na busca pelo sucesso imediato e, enfim, nos reencontramos com a metáfora da desembargadora Alba Basto: a realidade não contemplou as equações e os poderosos de ontem são apenas titulares de ilusão.
* Jornalista. Artigo originalmente publicado no site www.observatoriodaimprensa.com.br

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