O domingo ilegal e a jabuticaba

Por Roberto M. Moura Quando profissionais da imprensa aventam o perigo da volta da censura por causa do programa de Gugu Liberato ”ainda não …

Por Roberto M. Moura
Quando profissionais da imprensa aventam o perigo da volta da censura por causa do programa de Gugu Liberato "ainda não veiculado" talvez estejam vestindo a carapuça do gato escaldado que tem medo de água fria. Nesse caso,

é conveniente lembrar outro adágio popular: o que só tem no Brasil e não é jabuticaba é besteira.
Há TV sem regulamentação no mundo civilizado? Não. A sociedade civil organizada, em países da Europa, diz o que pode e o que deve ser veiculado, convencida de que a força da TV, que invade lares e forma consciências, não pode estar só nas mãos de seus produtores. Bourdieu, aliás, em seu Sur la television, diz isso também da imprensa: "É coisa séria demais para ficar exclusivamente nas mãos dos jornalistas".
Agora, tal como ocorreu quando as cenas de Laços de família aconselharam retardar a sua exibição, a primeira coisa que vem à cabeça é a volta da censura (a novela foi vendida para diversos países - faça-se uma consulta para saber se, em algum deles, ela foi exibida antes das 22h). Mas censura é uma medida discricionária de governos autoritários. No caso brasileiro, partia do Executivo e era exercida pela Polícia Federal.
O que isso se parece com uma ação do Ministério Público acolhida pela Justiça e referendada pela desembargadora que preside o TRF de São Paulo? Nas atribuições do Ministério Público incluem-se "as medidas necessárias para garantir o respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados pela Constituição Federal", entre elas zelar pela "observância dos princípios constitucionais relativos à educação, à cultura e à comunicação social".
Não foi isso o que foi feito, diante de um crime de responsabilidade social? O MP não extrapolou de suas atribuições legais nem foi arbitrário: fez uma petição, alinhou seus argumentos e convenceu a Justiça, em duas instâncias. O programa foi suspenso baseado nesses argumentos - que não encontraram força igual nos recursos milionários interpostos pelo SBT em defesa de seu contratado (o programa fatura 750 mil reais por semana, não se pode abrir mão assim desse dinheiro). Detalhe: o advogado que cuidou dos recursos e foi o primeiro a falar em "censura" acumula a função de presidente da OAB-SP, mas isso não intimidou as duas bravas mulheres que determinaram a suspensão: Leila Paiva, da 10ª Vara Cível/SP; e desembargadora Ana Maria Pimentel, presidente do Tribunal Regional Federal.
Para o deputado Orlando Fantazini (PT-SP), mentor da campanha Quem Financia a Baixaria é Contra a Cidadania e um dos principais batalhadores no Congresso pela regulamentação das TVs, como é normal na Europa Central, a decisão judicial "é uma punição ao que o programa fez, nunca censura".
Quanto ao argumento de que houve "prejulgamento" do programa que iria ao ar, a suspensão em si esgota o assunto. Suspensão é pena disciplinar - nada a ver, portanto, com proibição, atentado às liberdades e outras falácias. A se aceitar o argumento do SBT, coonestado aqui e ali na grande imprensa, o jogador de futebol expulso por agressão ao adversário pode pedir jurisprudência. Quem disse que ele vai "baixar o sarrafo" no próximo jogo também?
Por trás do episódio, e para dar muito trabalho a Fantazzini, há uma questão muito maior: o rumo que a mídia tomou no Brasil e a omissão governamental em relação a ela, que não é de hoje. Em Por uma outra comunicação, Robert McChesney informa que "desde Suécia, França e Índia até Austrália, Nova Zelândia e Canadá, os partidos políticos democráticos de esquerda estão dando à reforma estrutural da mídia - por exemplo, desmembrar as grandes empresas, recuperar o rádio e a TV não comercial e sem fins lucrativos, criar um setor de mídia independente sob controle popular - um papel maior em suas plataformas".
Ora, em nenhum dos países citados a mídia ostenta uma hegemonia próxima do que acontece no Brasil, onde se faz do governo, há anos, um refém. E, aí, voltamos à jabuticaba. Há um silêncio ensurdecedor, como naquelas parábolas em que o rei está nu, há um bode na sala e o sofá prestou-se a um adultério. Ninguém vê a nudez do rei, ninguém sente a catinga do bode. O culpado é o sofá.
* Artigo publicado no Jornal do Brasil, 29/09/2003.

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