O que eu esperava e o que descobri lendo a biografia de Nelson Sirotsky

Por Paulo Serpa Antunes

Boa parte da minha formação cultural e estética vem da RBS, mais especificamente do jornal Zero Hora. Me alfabetizei folheando o suplemento dominical Super Quadrinhos ZH e, anos mais tarde, passei a ser um consumidor precoce de jornalismo por meio do Zé H, o caderno infantojuvenil editado pelo saudoso Carlos Urbim. Tive muitas outras influências, é claro: mas Zero Hora foi uma das maiores.

Foi lá, também, que iniciei a minha carreira profissional, em 1995, atualizando o site do jornal e acompanhando o baixamento do extinto caderno ZH Informática. Naquele momento, passei a ter o meu primeiro contato com o mundo corporativo. A RBS já se apresentava como uma das grandes empresas de comunicação do País e vivia um processo celerado de modernização da gestão. Lembro como as discussões sobre a implantação do Programa de Participação de Resultados mobilizava a redação. Ou, ainda, do dia em que a empresa passou a distribuir cestas básicas aos funcionários com menor renda ou de receber o prospecto do seu recém-criado plano de previdência privada.

Trabalhei na RBS entre 1995 e 1999, ao mesmo tempo em que frequentava o curso de Jornalismo da Fabico. Ali, a RBS era tema constante e motivo de fortes críticas e de muito temor. Sob o comando de Nelson Sirotsky, a empresa, que já era líder nos mercados em que atuava, avançava a passos largos para dominar o mercado das telecomunicações: tinha participação na NET, a maior operadora de TV paga do Brasil, atuava no provimento de acesso a internet, era pioneira nos investimentos em conteúdo na Internet e, no processo de privatização do sistema de telecomunicações do Brasil, planejava assumir o controle da telefonia móvel e fixa na Região Sul do Estado.

É esta memória afetiva profissional e acadêmica que me fez correr para ler O Oitavo Dia (Editora Primeira Pessoa, 426 páginas), livro de memórias de Nelson P. Sirotsky, ex-presidente do Grupo RBS, redigido em parceria com a escritora Leticia Wierzchowski. Buscava desvendar, ali, um pouco do que fez a RBS tão importante na minha formação e da minha geração, bem como os caminhos da construção de sua marca, seu apogeu e suas crises.

Minhas dúvidas, no entanto, foram apenas parcialmente respondidas. De fato, Nelson Sirotsky se expõe bastante ao longo do livro (o que poderia, inclusive, não acontecer, tendo em vista o fato de este ser um misto de autobiografia e biografia autorizada) e é possível visualizar a trajetória do executivo. A história da RBS também está descrita ali.

Mas O Oitavo Dia não é exatamente sobre o que fez Nelson Sirotsky, mas sobre onde ele está. É uma espécie de balanço e, de alguma forma, sua justificativa para a decisão de se afastar da empresa da família e começar de novo, com outro empreendimento familiar. É um livro feito para tocar sua família, seus amigos, sua comunidade. E não para quem busca lições de gestão ou traçar um panorama do mercado de Comunicação. O que é uma pena, porque ele certamente é o personagem ideal para fazer as duas coisas, se assim o quisesse.

O Oitavo Dia, se é bastante feliz em narrar a trajetória da criação e consolidação da RBS nas mãos de Maurício Sirotsky Sobrinho e também em mostrar parte dos imensos desafios que envolvem os processos de sucessão familiar, deixa lacunas justamente no fim, ao não narrar as conquistas de Nelson na posição de CEO. Parece ter faltado fôlego ou, talvez, tenha havido excesso de humildade.

Mas a grande crise vivida pelo executivo e sua empresa, o episódio do leilão do sistema Telebrás (em que o empresário foi surpreendido quando o seu consórcio arrematou a gigantesca Telesp, quando o acordado com os sócios da Telefónica era a aquisição da TeleCentroSul), está lá, narrada em 11 páginas. E este talvez seja o melhor trecho da obra, mostrando inclusive os impactos desta crise na vida familiar do executivo.

Mas o livro deixa muita coisa de fora. A criação do portal ZAZ (depois rebatizado de Terra) é tratada muito ligeiramente (destacando, apenas, que teria sido um bom negócio de Sirotsky, justamente por negociar o ativo com lucro para o parceiro que lhe passou a perna, a Telefónica). A criação da TVCom ganhou algumas poucas linhas, mais por conta do carinho de Leticia Wierzchowski pelo canal de televisão comunitário do que pelas particularidades do projeto. Não existem referências aos investimentos do grupo em outras áreas, como na construção civil e TI. Também é ignorado o projeto do ClicRBS - o que me faz pensar que o projeto do portal, que buscou centralizar a presença das empresas do grupo na internet, talvez seja considerado, hoje, um grande erro estratégico da empresa.

Em compensação, há algumas passagens que, certamente, vão divertir aos profissionais de imprensa, entre elas dois momentos em que o concorrente Breno Caldas é citado, ou, ainda, os bastidores da criação do Diário Gaúcho - quando Nelson Sirotsky propôs uma joint venture com a Pampa de Otávio Gadret. A parceria, como sabemos, foi recusada e deu no que deu.

A questão é que estas passagens interessantes, que poderiam gerar boas reflexões no mercado, acabaram soterradas por decisões editoriais excêntricas dos autores. Talvez inspirada pelo Brás Cubas de Machado de Assis, Leticia Wierzchowski decidiu povoar a obra com autores defuntos, escrevendo trechos em primeira pessoa, como se fosse os pais, avós e outros amigos do biografado. Ao final, repete a fórmula esquisita colocando os três netos (ainda nenês) a falar da relação com o avô. O livro também se estende por páginas demais em uma narrativa making of, descrevendo detalhes dos encontros da escritora com o biografado. É possível perceber que houve pesquisa de acervo pessoal, mas faltam fontes que confirmem o caráter ou contestem a imagem de Nelson Sirotsky, o que se espera de uma boa biografia. Faz muita falta um índice onomástico.

A verdade é que O Oitavo Dia não parece ter sido escrito para nós, os leitores da Coletiva.net fascinados pelos mínimos detalhes do jornalismo, das negociações de verbas publicitárias e da gestão de empresas de Comunicação. A gente ainda precisará de outros textos para conhecer os bastidores da consolidação do Grupo RBS e para refletir como esta empresa conseguiu, ao longo de 61 anos, despertar tanto fascínio e temor em tanta gente.

Paulo Serpa Antunes é jornalista, mestre em Comunicação Social e editor da Matinal Jornalismo.

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