Os 23 de Tite e os 58 da Faixa de Gaza

Por Flávio Ilha, para Coletiva.net

Foi uma cobertura digna da preferência nacional: os portais ostentaram manchetes de cinco colunas, com fotos, análises, opiniões, projeções. Os jornalões mobilizaram repórteres, artistas gráficos, fotógrafos, diagramadores e outros 'issos' e 'aquilos' para produzir páginas e páginas de infográficos, tabelas, mais projeções, mais análises. As rádios transmitiram ao vivo. E até as newsletters, essa nova tendência do jornalismo nacional, abriram espaços generosos ao noticiário gerado da sede da CBF, no Rio de Janeiro. Finalmente, a um mês do início da Copa do Mundo, a mídia pôde anunciar 'os 23 de Tite'.

O tema sempre mobiliza a imprensa brasileira, é natural. A Zero Hora ostentou a foto de um Tite sorridente na capa e produziu um caderno de 12 páginas com o perfil de cada convocado. Deve ter dado muito trabalho, principalmente devido aos nomes surpreendentes da lista: Taison e Fred. O noticiário continuou nas páginas da seção de Esporte. O Correio do Povo abriu foto de quatro colunas. O Metro chegou a exibir uma montagem de Tite com o corpo tatuado de craques.

No mesmo dia, entretanto, 58 palestinos foram mortos e cerca de três mil ficaram feridos pelo exército de Israel durante protesto contra a instalação da embaixada dos Estados Unidos em Jerusalém - uma decisão monocrática de Donald Trump que escandalizou o mundo civilizado. A Folha de S. Paulo cravou como manchete e foto principal, enquanto que O Globo e O Estado de S. Paulo relegaram a nova chacina do Oriente Médio a assunto secundário.

Por quê? É sabido que o noticiário internacional nunca cativou a mídia brasileira contemporânea. Basta dar uma olhada nos jornais antigos da Província, lamentavelmente trancados no Museu Hipólito José da Costa sine die, para notar que o hábito foi abandonado a partir de meados dos anos de 1970. Os jornais do Uruguai, da Argentina, do Chile, do México mantiveram a relevância do noticiário mundial, especialmente em situações dramáticas como as noticiadas em Gaza.

Mas e nós? Por alguma razão estupenda, nossos editores preferem manter o planejamento traçado por meses a fio, que deve ter incluído reuniões e mais reuniões de pauta, do que subverter uma edição em nome... da notícia. Sim, 58 palestinos mortos em Gaza numa ação virulenta de Israel, com apoio do governo norte-americano, é muito mais notícia, tem muito mais relevância, afeta muito mais a nossa vida cotidiana - embora a maioria de nós ache que não - que os 23 convocados de Tite. Os editores, entretanto, não pensam assim.

Ainda mais quando uma pesquisa do Instituto Datafolha, de uma semana atrás, revelou que o nosso interesse pelo futebol despencou em relação a 2010. Três em cada 10 brasileiros diz não ter interesse nenhum pela Copa do Mundo - quase o mesmo índice dos que dizem ter grande interesse. Entre as mulheres, praticamente seis de cada 10 entrevistadas diz estar se lixando para o Mundial. Por classe social, os dados também são interessantes: quanto menor a renda familiar, maior o desinteresse pelo torneio da Fifa.

As manchetes desta terça-feira corroboram uma sensação crescente nessa crise de representatividade enfrentada pelos jornalões, principalmente, mas também pelas mídias menos tradicionais: a dificuldade de se comunicar com públicos heterogêneos. A seleção de Tite segue encantando o leitor de renda mais alta no Brasil, geralmente homens brancos bem empregados. E, claro, os editores dos jornais e dos sites de notícias, geralmente homens brancos e bem empregados.

Flávio Ilha é jornalista.

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