Que general?

Por Mario de Almeida Dia 14 de novembro de 1963, encontro o artista Xico Stockinger a caminho da Caldas Júnior, onde fazia charges na …

Por Mario de Almeida
Dia 14 de novembro de 1963, encontro o artista Xico Stockinger a caminho da Caldas Júnior, onde fazia charges na Folha da Tarde. Num episódio que conto no livro a sair, em parceria com Rafael Guimaraens,* Xico comprara de mim, meses antes, um quadro de Manabu Mabe (cuja reprodução está no livro) pelo valor de três meses do imóvel do Teatro de Equipe, que já estava sem espetáculos. Xico achara o negócio vantajoso demais e me prometeu dar uma escultura.
Nesse dia 14, ele, que sofria a escalada de um processo de surdez, disse-me que tinha a certeza de que terminara uma peça, em metal, que eu iria querer sem pestanejar. Dia seguinte seria feriado e fiquei de ir visitá-lo, em sua casa e atelier, na Rua Pelotas, na Floresta. Lá chegando, Ieda, a esposa, que sabia das coisas, disse-me para não ir ao atelier, pois lá estava o general Amaro da Silveira que, há semanas, abrira um processo contra mim e outro contra a Ultima Hora, por conta do episódio onde o governo Meneghetti entregara os arquivos policiais aos EUA.
Eu era freqüentador assíduo do casal e Ieda me levou para a cozinha, nos fundos da casa, onde fomos tomar um cafezinho. Dos basculantes da cozinha via-se a pequena área onde Xico tinha seu forno e, adiante, seu atelier.
Ao sair do atelier para fazer alguma coisa, Xico me viu através dos basculantes e me chamou para ir ao seu encontro. Ainda pelos basculantes, com muito cuidado vocal, disse ao Xico que não podia ir, por causa do general. Naquele tom típico dos deficientes auditivos, Xico berrou: - Que general?! Fui para a porta da cozinha, tentando explicar, e Xico gritou ainda mais alto: - Que general?!!. Agora, quem estava na porta do atelier era o próprio general, amigo e admirador da obra do artista. Como nos conhecíamos fisicamente e o general teve uma imediata percepção do que acontecia, começou a rir. Eu também comecei a rir e, enquanto o general voltava para o atelier, eu voltava para a cozinha.
Depois que o general se retirou e de uma nova sessão de risadas da Ieda, do Xico e minhas, fomos para o atelier onde, dramaticamente, Xico puxou com força um saco de aniagem que envolvia uma escultura de metal, hierática, com cerca de um metro de altura. Segundos depois, eu abraçado à peça, confirmava: - É minha! E Xico completava: - É o Fidel.
Após minha fuga do Rio Grande, onde publiquei em minha coluna na Última Hora, "Sem Censura", em 2 de abril de 1964, a carta-testamento e a foto de Vargas, o também artista e amigo Léo Dexheimer teve a generosidade de me trazer o "Fidel" que está aqui, ao lado do computador, revigorando-me em momentos de cansaço e desalento.
Em novembro de 2001, quando estive em Porto Alegre participando do Painel "Teatro de Equipe - Casa de Cultura", promovido pela Feira do Livro, o casal Ivette Brandalise e Milton Mattos ofereceu um jantar a amigos comuns. Xico levou-me como presente uma "escultura-engate" de um casal transando, que era para me "lembrar de como era". Logo eu, que não me esqueci daquela manhã de 1963, iria me esquecer de noites tão recentes?
Quanto ao processo, movido pela Secretaria de Segurança, nosso companheiro de UH, o advogado Godoy Bezerra, conseguiu que ele prescrevesse. O que não irá prescrever - nunca - foi o grande momento hilário: - Que general?!
Mario de Almeida é jornalista e publicitário
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* Teatro de Equipe - Trem de Volta, Editora Libretos, apoio da Promoarte


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