Quem é, afinal, esse tal Big Brother?

Por Thaís Saraiva A maior parte dos brasileiros acredita que “Big Brother” seja apenas um programa de televisão inventado na Holanda, no qual câmeras …

Por Thaís Saraiva
A maior parte dos brasileiros acredita que "Big Brother" seja apenas um programa de televisão inventado na Holanda, no qual câmeras ocultas transmitem a intimidade e as baixarias dos participantes 24 horas por dia. Afinal, o que é esse fenômeno que mobiliza milhões de telespectadores nos países por onde passa? Sabemos que ele arruma empregos para especialistas em tecnologia da informação, inspira artigos de sorumbáticos cientistas políticos e provoca a ira dos defensores da democracia, dos direitos fundamentais e da privacidade dos cidadãos. Mas o que é (ou melhor, quem é?) o Grande Irmão? Quem o inventou? Qual seu objetivo, afinal? Melhor voltarmos no tempo para entender essa história.
O ano era 1945, e ainda não haviam cicatrizado no Ocidente as feridas abertas pelos regimes totalitários de Adolf Hitler, na Alemanha nazista, e de Joseph Stálin, na União Soviética comunista. Foi nesse contexto que o jornalista inglês Eric Blair, que assinava com o pseudônimo George Orwell, publicou uma das obras mais vendidas de todos os tempos: Animal farm, uma alegoria infantil que denunciava a suposta predisposição da humanidade para a violência e como uma camarilha política poderia tomar de assalto o poder em nome do povo. No Brasil, o livro recebeu o título de A revolução dos bichos e, na década de 1970, inspirou o musical Os saltimbancos, de Chico Buarque, já assistida pela terceira geração de crianças. Qualquer brasileiro que tenha menos de 40 anos decerto já cantarolou na escola as músicas dessa peça.
Relembrar tais fatos tem por objetivo afirmar, simplesmente, que cada um de vocês já teve algum tipo de contato com George Orwell e que o verdadeiro pai do Big Brother não é um holandês especialista em exibicionismo na TV; mas sim um jornalista inglês, Orwell, cuja maior preocupação era denunciar o controle do Estado sobre o cidadão. Fez isso em A revolução dos bichos, uma alegoria político-infantil, onde temos as palavras "granja" relacionada à sociedade e "porcos" relacionada aos já conhecidos "ditadores". Repetiu a dose, com muito mais precisão e repercussão, em seu livro seguinte: 1984, uma alegoria político-científica, onde surgiu o personagem Big Brother. Tratava-se de sua obra-prima; aliás, sua última obra. Orwell terminou de escrever 1984 em 1948; o livro foi publicado no ano seguinte. Aliás, uma curiosidade: o título original deveria ser O último homem livre da Europa", mas na última hora o autor resolveu inverter os números do ano - assim, 1948 virou 1984.
O livro do mal
Nessa obra, George Orwell apresenta uma teoria sobre como um grupo bem-organizado pode tomar o poder e controlar o Estado sem jamais ser importunado seriamente. O segredo seria montar um esquema que teria na tirania e no autoritarismo a própria condição de sua existência. Ou seja, os governantes deveriam exercer o terror, a tortura, a vigilância - a maldade - como pré-condição para a perpetuação no poder. O mal pelo mal, como o Darth Vader de Star War; o poder pelo poder, como em Hitler e Stálin.
A sociedade era estruturada na mais completa desagregação social (sem imprensa livre, sindicatos ou associações; até mesmo sem famílias coesas), mas se mantinha coesa pela tirania, a coação e a vigilância. O Estado encontra um modo de conduzir as ações de todos os cidadãos; há regras e imposições até para os pensamentos: o que se pode e o que não se pode pensar. Toda a existência física e mental se curvava a esse regime de poder supremo.
O Big Brother
O dirigente máximo dessa sociedade era chamado de Grande Irmão (Big Brother, no original em inglês). É o grande tirano, aquele que todos tinham a obrigação de idolatrar, respeitar e obedecer cegamente, como se fosse um pai todo-poderoso, um deus. Ele não tem nome e jamais foi visto em público - era somente um retrato de um homem com enormes bigodes, inspirado na figura de Stálin. Ressalte-se que todos os regimes totalitários promoveram o culto à personalidade do líder máximo: o populismo. Aliás, nas tiranias boa parte do controle é exercido pelo culto à figura do ditador, como ocorreu na União Soviética, na Alemanha, na Itália de Mussolini ou mesmo no Brasil de Getúlio Vargas.
O Big Brother de Orwell foi mais além. O governo instalou câmeras em todas as residências para vigiar os cidadãos, como no programa de TV Big Brother. O escritor batizou essas câmeras de teletelas. Na época, 1948, a televisão comercial nem sequer havia entrado em operação, e as teletelas não passavam de ficção científica. Através delas, o Big Brother poderia tudo ver sem ser visto. Poderia também estar presente em todos os lugares, levando sua imagem e sua mensagem. Ou seja, tinha os três poderes divinos: onividência, onipresença e onipotência. Todos em prol da dominação.
Para que o Big Brother de Orwell conquistasse a onipotência, o terceiro atributo divino, o ódio pelo próximo (ou por outras formas de organização social) era incitado pelo governo, fomentado e finalmente criado dentro do próprio sistema para dar continuidade e finalidade à subordinação. Em 1984, os cidadãos são obrigados a parar diariamente, na mesma hora, a fim de exercitar os "Cinco Minutos de Ódio". Parece inverossímil. Obra de ficção científica? Não, esses fatos aconteceram e acontecem. Naquela época, por exemplo, a ciência tentava dar veracidade às loucuras propostas por tiranos, como a superioridade da raça ariana defendida por Hitler; ou a inferioridade dos negros e das mulheres perante o homem branco. O assunto é atual, afinal, ainda hoje palestinos e judeus são criados no mesmo princípio do ódio.
Outro ponto importante a ressaltar é a alienação, base da dominação na obra de Orwell. O homem que vivia sob o comando do Big Brother não podia explorar sua mente ou o prazer que o corpo proporciona. A realidade conhecida era a que o Big Brother queria mostrar. Ele também fez algumas concessões ilusórias, baseadas na liberdade vigiada, para aqueles que seguissem com disciplina a ideologia imposta pelo governante. Poucos percebem que essa realidade é construída artificialmente e que fora dela existem inúmeras possibilidades de viver. As pessoas enxergavam o mundo do Big Brother pensando enxergar a verdade absoluta, não sabiam que eram cegas; e, se percebiam pagavam caro por isso.
Questão da privacidade
O livro 1984 vendeu 10 milhões de exemplares em todo o mundo, 300 mil no Brasil, e se inscreveu como uma das obras mais importantes de todos os tempos. Durante os 44 anos que durou a Guerra Fria, Orwell e seu Big Brother eram estudados pela Ciência Política por conta da questão do totalitarismo. A partir da década de 1990, com o surgimento da internet e a expansão das novas tecnologias de comunicação, a alegoria do Big Brother passou a ser utilizada também para ilustrar uma nova questão em pauta: a privacidade. Começaram a surgir alertas dos especialistas em tecnologia sobre os perigos do monitoramento dos cidadãos proporcionados pelas novas tecnologias e pela internet em especial. Centenas de artigos passaram a acusar Bill Gates, dono da Microsoft, de tentar ser a encarnação do Big Brother fora da ficção.
Na virada do milênio, produtores de TV holandeses criaram um formato de programa baseado nos reality shows, cuja característica principal é o monitoramento de pessoas confinadas numa casa 24 horas por dia, com posterior exposição pública de suas intimidades. Batizado de Big Brother, esse programa já teve versões exibidas em dezenas de países, da Austrália à Turquia. No Brasil, a primeira versão foi exibida entre março e abril de 2002, tornando-se repentinamente o assunto mais comentado do país.
Curioso o capitalismo. Um dos maiores escritores de todos os tempos leva a vida inteira para elaborar uma obra-prima que levanta questões essenciais para os direitos humanos, como a liberdade e a privacidade, e de repente alguém dá um jeitinho de transformar seu alerta político em produto de venda lucrativo. A política de cooptação atual é muito mais intensa que a aplicada pelo Império Romano.
Ditador capitalista
Está ai um dos únicos equívocos de Orwell: achar que o totalitarismo ganharia a guerra. O neoliberalismo, hoje, domina o mundo com totalidade quase absoluta. Como o Big Brother original, o capitalismo joga com uma realidade cheia de liberdades ilusórias e continua usando da ciência para validar seus atos de tirania e dominação. Em vez do controle total, inclusive do pensamento, basta controlar os principais meios de comunicação. Ao criar novos hábitos de consumo, leva-se os cidadãos a comprar e a instalar espontaneamente todo o aparato tecnológico de vigilância utilizada pelo Big Brother, sem necessidade de repressão.
As teletelas imaginadas por Orwell tornaram-se realidade com outro nome e formato. São os microcomputadores pessoais conectados à internet, com uma parafernália de softwares de vigilância e quebra de privacidade que receberam a denominação elegante de CRM. No contexto atual a dominação é feita com o consentimento dos consumidores "bem-informados". Por escolha, conforto, comodidade e rapidez, o Grande Irmão traz a modernidade para dentro de casa. Nosso sistema capitalista funciona como um ditador invisível, que controla a vida de todos com a "liberdade vigiada", em que as pessoas são induzidas a crer que são livres e que podem fazer suas próprias escolhas.
O pensador francês Michael Foucault, autor de clássicos como Vigiar e punir e Microfísica do poder, fez observações pertinentes ao nosso tema. Em suas teorias a respeito da pós-modernidade, o pleno poder só pode ser exercido com as concessões, da falsa liberdade. Esse controle pode ser feito pela banalização da violência que confina as pessoas dentro do medo, pela estética que padroniza o belo, o "normal"; e por várias outras formas e teias que se articulam para aprisionar o homem dentro de sua própria existência. Escreve Foucault: "Fabricam-se indivíduos submissos, e se constitui sobre eles um sabor em que se pode confiar."
* Estudante de Comunicação da Universidade Católica de Brasília. Colaboraram com idéias e trechos os estudantes Carlos Alberto Teodoro e Rosana Assis. Este artigo foi publicado no site Observatório da Imprensa

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