Timoneiro midiático

Por José Marques de Melo A morte de Roberto Marinho, aos 98 anos, encerra capítulo importante na vida jornalística brasileira, simbolizando um divisor de …

Por José Marques de Melo
A morte de Roberto Marinho, aos 98 anos, encerra capítulo importante na vida jornalística brasileira, simbolizando um divisor de águas no panorama da nossa indústria midiática.
O capítulo por ele protagonizado refere-se à saga dos jovens herdeiros que foram capazes de continuar e consolidar os empreendimentos recebidos como legado paterno, transferindo às novas gerações patrimônio sólido e projetos viáveis. O império comunicacional que ele entrega aos filhos e netos tem todas as condições para superar as dificuldades conjunturais, trilhando o caminho do sucesso até agora logrado pelo seu timoneiro.
O divisor de águas encontra-se na sua precoce compreensão de que o negócio midiático é regido por engrenagens multinacionais, embora seus conteúdos possuam forte conotação nacional/regional. Sua convicção a respeito do papel do capital estrangeiro nas economias emergentes e sua cruzada para torná-lo fator de crescimento das empresas midiáticas sem dúvida influíram na recente mudança do artigo 222 da nossa Constituição.
Quando ousou, nos idos de 60, associar-se ao conglomerado Time-Life, assimilando conhecimento e tecnologia testados no país que sempre esteve na vanguarda da indústria cultural, Roberto Marinho enfrentou a exacerbação irada dos movimentos nacionalistas. Obrigado a rescindir contratos e reformular metas, demonstrou, com o tempo, que tal estratégia não continha ingredientes antipatrióticos.
Sua empresa televisiva, ancorada no aprendizado com os assessores estrangeiros, foi capaz de modernizar-se e dinamizar-se, sem perder sua fisionomia brasileira. Ao contrário, perfilou um modelo de difusão cultural que nos fez resgatar as raízes populares da nacionalidade, propiciando uma maior sintonia entre o país e suas tradições simbólicas. Além disso, contribuiu para cimentar o processo de integração nacional que havia sido iniciado pelas vias costeiras, no regime imperial, e intensificado através das estradas de rodagem ou das linhas aéreas, durante a fase republicana.
Mais recentemente, depois de haver conquistado a hegemonia no mercado nacional, sua indústria de entretenimento potencializou a inserção da cultura brasileira na aldeia global. A exportação de telenovelas, musicais e espetáculos desportivos tem propiciado a expansão das nossas fronteiras intelectuais, dando visibilidade ao país e ao seu povo. Nesse sentido, as organizações de Roberto Marinho fizeram, em pouco mais de uma década, aquilo que o Itamaraty não logrou, durante quase dois séculos da nossa vida independente.
Ao fazer o inventário da saga midiática de Roberto Marinho torna-se necessário destacar sua concepção jornalística, eivada de princípios liberais e compromissos democráticos. Desde que assumiu a direção do jornal "O Globo", na década de 30, ele se mostrou fiel ao ideário do pai, Irineu Marinho, imprimindo uma linha editorial marcada pela objetividade informativa e pelo pluralismo de opinião.
Não obstante o jornal tenha sido concebido como veículo politicamente independente, isso nunca significou a sua abstenção diante das grandes questões nacionais. Coube a Roberto Marinho definir com argúcia, serenidade e determinação os rumos a serem assumidos nos editoriais e na política institucional. Mesmo tendo optado pelo endosso aos regimes autoritários instaurados pelos movimentos militares de 30 ou 64, nunca claudicou diante da censura. Manteve sempre um comportamento de defesa da liberdade de expressão, condenando a ingerência do aparato governamental nos conteúdos a serem difundidos e na composição das suas equipes profissionais.
Momentos houve em que suas empresas sofreram represálias políticas e danos econômicos. A proibição da telenovela Roque Santeiro durante o regime militar foi emblemática, contabilizando prejuízo material e frustração psicológica. Por isso mesmo é que seu remake converteu-se em símbolo da reconquista das liberdades públicas na alvorada da Nova República, talvez para compensar a falta de sensibilidade da TV Globo ao negar legitimação ao movimento popular pelas diretas-já, quando a ditadura já exibia evidentes sinais de esgotamento.
Acertando o passo com a reconstrução da vida democrática, em nosso país, as organizações de Roberto Marinho respaldaram os governos vitoriosos nas urnas, de Collor a Lula. Seu termômetro tem sido a opinião pública. Elas perfilaram também uma trajetória de expansão convergente dos seus negócios no setor midiático, até mesmo pela necessidade de enfrentar a concorrência que se fortalece no segmento televisivo (Grupo Silvio Santos e Rede Record) ou engendrando estratégias de cooperação empresarial, seja com parceiros nacionais (Valor Econômico) ou multinacionais (TV por satélite).
Qual a fórmula responsável pelo êxito de Roberto Marinho como timoneiro midiático? Ela reside na gestão profissionalizada das suas empresas. Essa opção ele adota ainda muito jovem, quando, após a morte do pai, confia a direção de "O Globo" ao jornalista Euricles de Mattos. Ele sempre procurou cercar-se de profissionais competentes, como Herbert Moses, Walter Poyares ou Walter Clark, aconselhando-se antes de tomar decisões de peso ou transferindo-lhes responsabilidades executivas em unidades do conglomerado.
Sua longevidade garantiu a preparação dos filhos para assumir o comando dos negócios e a operação das empresas, da mesma forma que ele aprendera precocemente com seu pai o ofício jornalístico.
Em se tratando de organizações profissionalizadas, seus herdeiros terão mais chance de êxito do que os sucessores daquelas empresas nutridas segundo padrões estritamente familiares.
* Professor emérito da ECA-USP e titular da cátedra Unesco de Comunicação na Universidade Metodista de São Paulo

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