A cara do governo

Governos totalitários tendem a transformar a fisionomia do presidente em símbolo nacional mais importante do que a bandeira, o brasão ou o hino. Cuba …

Governos totalitários tendem a transformar a fisionomia do presidente em símbolo nacional mais importante do que a bandeira, o brasão ou o hino. Cuba é, há mais de quarenta anos, a barba, o boné, o charuto e os extenuantes discursos de Fidel Castro. A China recém manifesta um tênue desejo de abrir mão do semblante de Mao, e ainda hoje os vietnamitas recebem seus miseráveis rendimentos em dongs com a face de Ho Chi Min. A primeira providência dos soldados americanos no Iraque ocupado foi derrubar as estátuas e raspar as imagens do onipresente Saddam Hussein, num reconhecimento de que imagem é tudo, e que isto está longe de ser coisa do capitalismo ocidental.
As cenas de manifestantes pondo abaixo estátuas de Lênin e Stálin na Rússia pós-URSS tornaram-se emblema dos novos tempos, livres da influência além-túmulo daqueles sisudos cavalheiros. Na América do Sul, o fim de ditaduras militares não representou a derrubada de símbolos porque por aqui o culto foi muito mais à farda do que aos participantes do rodízio de generais. Além do mais, não houve movimento de libertação, e sim transição, o que significa que sim, eles até aceitaram desocupar a moita, mas é melhor não incomodá-los em seu merecido repouso promovendo caça às bruxas e vendendo como suvenir cacos de estátuas do Pinochet.
Governos democráticos podem prescindir de tais símbolos porque se comunicam com o povo de outras formas, a começar pelo primitivo diálogo e a prosaica urna. A cara de George W. Bush, eleição suspeita à parte, faz sentido para o povo americano, que entre Condoleesa Rice e Colin Powell fica com o segundo, não pela expressão do rosto, que de certa forma é até jamaicanamente simpático, mas pelo irresistível apelo da indumentária. Como jamais tiveram de se submter ao poder fardado, acham divertido impô-lo aos outros.
O Brasil contemporâneo nunca teve muita chance de escolher a cara do governo pela simples razão de que poucas vezes pôde escolher o próprio governo. Quando o pôde, à exceção de Juscelino Kubitschek, homem de bem com a vida que não precisava fazer certas coisas com a nação porque o fazia com suas amantes, muitas vezes o país acabou nas mãos de políticos com a embriagada sandice de Jânio, a alucinada loucura de Collor ou a irreversível patetice de Itamar. Fernando Henrique Cardoso elegeu-se duas vezes mesmo sendo um homem normal, o que já foi um espanto. O governo FH teve a cara do chefe, o que já foi um avanço.
O governo Lula ainda tem a chance de desenhar o próprio semblante, que pode ser o do presidente mesmo, íntegro, negociador e bem-humorado. Só é preciso tomar cuidado para que o resultado do esforço de Duda Mendonça não seja contaminado pela chatice de José Alencar ou pelo mau humor de Olívio Dutra. O neoliberal Antônio Palocci e o diplomata José Dirceu têm prevalecido.
Necessitado de um atídoto para o efeito Benedita da Silva, o ministro da Propaganda deveria investir mais em Marina Silva. Dotada de uma biografia politicamente correta e de uma simpática morenice tropical, ambientalista de primeiríssima linha, mas consciente do papel de ministra, Marina tem tudo para transitar com desenvoltura entre as diversas alas, correntes e partidos que formam o governo e ainda se comunicar bem com o Brasil. Tem a cara que o PT gostaria de ter mas raramente consegue.
* Eliziário Goulart Rocha é jornalista e escritor, autor dos romances Silêncio no Bordel de Tia Chininha e Dona Deusa e seus arredores escandalosos e da ficção juvenil Elyakan e a Desordem dos Sete Mundos. Integra a equipe da ConsulteCom e escreve semanalmente neste site.
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 Eliziário Goulart Rocha é jornalista e escritor, autor dos romances Silêncio no Bordel de Tia Chininha, Dona Deusa e seus Arredores Escandalosos e da ficção juvenil Eliakan e a Desordem dos Sete Mundos.

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