A carne mais barata do mercado é a carne negra

Por Márcia Martins

O domingo, 7 de abril, seria apenas mais um dia comum para uma família que vestiu sua melhor roupa para participar de um chá de bebê, momento de confraternização entre parentes, amigos e conhecidos em que se comemora a futura chegada de uma nova vida no mundo. Mas a família não chegou ao seu destino. Não entregou os presentes que comprara para o chá de bebê. Não conseguiu comemorar a vida. Passou a chorar a morte. Sem explicação. Sem motivo. Sem entender o que aconteceu. No caminho, na Estrada do Camboatá, em Guadalupe, Zona Norte do Rio de Janeiro, exatamente às 14h40, o carro que conduzia cinco pessoas para o chá de bebê foi alvejado por pelo menos 80 disparos de fuzis de soldados do Exército Brasileiro.

Evaldo dos Santos Rosa, 51 anos, músico e que trabalhava como segurança em uma creche, que dirigia o veículo, morreu na hora. Na carona do motorista, seu sogro, controlou ainda a direção por mais 200 metros. Mas os tiros continuavam. O carro para. A mulher de Evaldo, o filho do casal de sete anos e uma amiga (todos no banco de trás do Ford Ka branco) conseguem sair do automóvel. É o momento em que nove soldados se aproximam mais ainda do carro e intensificam os disparos. Luciana Nogueira, esposa de Evaldo, desesperada pede aos soldados armados que não atirem mais. Ela suplica que seu marido seja socorrido. E chora desalentada ao ver que os militares nada fariam para socorrer seu esposo e ainda ficam debochando de sua dor.

A explicação inicial do Comando Militar do Leste era que o morto era um assaltante e o carro dirigido por Evaldo foi confundido com o de criminosos. E isso justifica o disparo de 80 tiros? Posteriormente, trocou a versão alegando inconsistências nos depoimentos. Na segunda-feira, 8 de abril, após colher os depoimentos dos militares envolvidos na chacina, determinou a prisão em flagrante de 10 dos 12 ouvidos. Serão agora investigados pelo próprio Exército em função de uma lei sancionada em 2017 pelo então presidente Michel Temer. Numa tarde de domingo, num trânsito que fluía sem problemas, sem blitz, sem arrastão, uma família indo para um chá de bebê. O saldo foi um homem morto, dois feridos (o sogro e um pedestre), uma família dizimada.

O cenário todo é de terror. O absurdo do disparo de 80 tiros. O despreparo de militares que empunham fuzis. O deboche dos soldados que ignoram o desespero da esposa do motorista. Nenhuma arma encontrada no carro cravado de balas. Uma criança de cinco anos que assiste à chacina. Um carro todo alvejado. Inocentes mortos. Uma família dizimada. E na segunda-feira, um dia após o crime, o País recomeça a sua vida como se nada tivesse acontecido. Todos em paz com as suas rotinas. A morte não lhes pesa na consciência.

Mas deveria. Principalmente por um fato crucial na chacina de 80 tiros. A família que estava no carro alvejado pelos militares era de cor negra. E, neste País, repleto de preconceito racial, o extermínio de pessoas negras é visível, crescente e preocupante. Neste País, basta ser negro para ser suspeito e merecer, por exemplo, ser seguido por seguranças em supermercados e lojas. Neste País da impunidade, uma família indo para um chá de bebê numa linda tarde de domingo é motivo para receber 80 tiros se dentro do carro seus ocupantes forem da raça negra. Vivemos, em pleno 2019, numa sociedade genocida, discriminatória, preconceituosa e misógina.

Infelizmente, o Brasil é um país racista. Infelizmente, o Brasil é um país que mata os seus negros e suas negras. Infelizmente, algumas coisas aqui no Brasil só acontecem com pessoas negras, como um fuzilamento com 80 tiros numa tarde de domingo, como a perseguição em lojas comerciais sem nenhum motivo aparente, como o olhar de medo da branquela para o negro de boné dentro de um coletivo ou a morte de um rapaz negro indefeso por seguranças em um supermercado. Infelizmente, expressões racistas são repetidas em almoços dominicais de famílias abastadas e aprendidas pelos filhos que mais tarde propagam o preconceito. Infelizmente, piadas preconceituosas ainda são contadas em rodas de conversas, de futebol, de encontros de amigos.

Se não fosse assim, seria apenas mais uma tarde de domingo para Evaldo, sua esposa, seu sogro, seu filho e uma amiga. Mas, infelizmente, a carne mais barata do mercado é a carne negra. Como diz a música de autoria de seu Jorge, Marcelo Yuka (RIP) e Wilson Capellette: "Que vai de graça pro presídio e para debaixo do plástico, que vai de graça pro subemprego e pros hospitais psiquiátricos, a carne mais barata do mercado é a carne negra, que fez e faz história segurando este país no braço, o cabra aqui não se sente revoltado porque o revólver já está engatilhado e o vingador é lento".

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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