A moça à janela

Por José Antônio Moraes de Oliveira

"Há tanta moça bonita

Nas ruas que não andei

E há uma rua encantada

Que nem em sonhos sonhei?"

Mario Quintana.

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Aqueles eram tempos felizes e despreocupados, quando estacionávamos no meio da rua para apreciar com devoção juvenil o ondular de cabelos soltos nos ombros inocentes das meninas. E lá ficávamos nós, aflitos e à espera de um sinal, um olhar, por mais discreto que fosse. Que nunca chegava.

A cidade começava e terminava nos limites de nossa rua, duas ou três esquinas além. Em nossa pequena aldeia, todos se conheciam e se diziam bom dia e boa noite. Mas aqueles dias quietos e modorrentos se foram, quando, em um sábado de verão, chegaram uns novos vizinhos, gente de olhos azuis, falando com sotaque para ocupar o casarão da esquina.

Foi quando entrou em meus sonhos uma certa moça de sardas e cabelos ruivos.

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De um dia para o outro, a rua mudou. A aldeia não era mais a mesma. Os novos vizinhos encheram de movimento, luzes e sons o velho casarão que, por anos, permaneceu adormecido. Os recém-chegados vieram a bordo de imponentes automóveis, do tipo que só conhecíamos em filmes: uma Lincoln Packard negra e uma Adler vermelha de duas portas. Aquele foi um dia e tanto para a gente, que gostava de admirar os Buicks e Studebakers que desfilavam pela Avenida Independência. Mas, além dos novos autos, algo mais sacudiu nosso imaginário - a ruiva de sardas.

Éramos meninos comportados e bem educados. De quando em vez, um de nós arriscava um atrevido assovio à passagem das moçoilas que passavam de braços dados. Naqueles dias, moças de família não saiam às ruas sozinhas - sempre aos pares ou em pequenos grupos. As severas famílias alemãs e judias mantinham as filhas em casa, com horários rígidos para ir e voltar do colégio. E suas blusas fechadas dos uniformes e as meias acima dos joelhos serviam para alimentar nossos ingênuos sonhos lúdicos.

Então, naquele sábado de Verão em que o caminhão vermelho e branco da Mudanças Camiza parou diante do sobrado da Rua Henrique Dias, começaram as transformações. Mudanças de casa eram uma novidade. As famílias se apegavam às casas em que haviam nascido e nas quais moravam até quando a memória alcançava. Mas, por outro lado, os mais novos ansiavam por novidades. Talvez por isso, o bando de meninos de nossa rua acorreu para ver de perto os novos moradores. Logo a notícia correu de casa em casa, rua acima e rua abaixo: os recém-chegados eram do norte da Europa, uma família rica que fugia da guerra. E já se sabia que o chefe da família comprava e vendia ouro e pedras preciosas e que sua esposa era pianista de renome. Tinham um casal de filhos adolescentes: um rapaz quieto de cabelos cor de milho a moça ruiva que tinha sardas e usava cabelos atados em tranças.

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Comecei a fazer planos - mudar meu trajeto diário, para o ginásio, fazendo uma volta pela rua Henrique Dias e passando pelo sobrado da esquina. Dito e feito. Já na segunda-feira, em vez de seguir pela Vasco da Gama e descer a Fernandes Vieira, passei a esticar o caminho, passando devagar pelo sobrado. Havia movimento, gente entrando e saindo, mas não vi sinal da moça de tranças.

Nos dias seguintes, repeti o mesmo caminho, mas sem sucesso. Até que, em uma certa manhã, já meio desanimando, abriu-se uma janela do primeiro andar e lá estava ela! Foi como uma aparição, que me deixou de boca aberta. A moça era mesmo um encantamento, como diziam os meninos, suas tranças ruivas cor-de-fogo descendo pelos ombros e o rosto pintalgado de sardas. Para completar meu deslumbramento, ouviu-se no mesmo momento, o som de um piano muito bem tocado.

A moça de tranças logo voltou para dentro, mas o som do piano continuou ecoando pela rua. Nos dias que seguiram, repeti o caminho, passando pelo sobrado à mesma hora, tentando rever a moça à janela. Mas tudo o que conseguia eram os acordes do piano, vindo do interior do casarão, sempre a mesma melodia, que mais tarde, fiquei sabendo que era o Noturno Opus 9, n°1 de Chopin.

A vida seguiu em frente, chegaram os temíveis exames finais no ginásio e logo as benfazejas férias na fazenda. Mas, desde aquele verão, nunca mais consegui avistar a moça de tranças na janela do casarão. Quando pedi notícias aos meninos da rua, me contaram que ela estava no internato de um colégio alemão for a da cidade. Mas, até hoje, quando ouço um Noturno de Chopin, revejo aquela moça de tranças, debruçada em uma janela dos sonhos de minha adolescência.

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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