Contém tudo

Por Fraga

A gente demorô pra se acostumar com aquelas caixonas de aço, vulgo contêineres. Foi em 1937 que o norte-americano Malcom McLean (1913-2001) sacou o sistema que resolveu o transporte marítimo. O cara ficou bilionário e a humanidade, um pouco mais padronizada. Hoje, os contêineres são comuns desde os oceanos até à paisagem urbana. Servem pra descomplicar a vida e também foder com ela.

Fora os contêineres móveis, que circulam pelo mundo feito gigantescas caravanas transatlânticas, os contêineres estacionários revolucionaram a arquitetura. Não cabe um prédio naquele terreninho? Tasca ali um caixote metálico. O projeto precisa ter um custo pequeno? Contêiner. O negócio é uma loja-conceito, supermoderna? Contêiner. Pela praticidade e mil utilidades, contêineres por tudo quanto é lado.

Em Poa, você entra numa lanchonete e saboreia um hambúrguer sem nem notar que está num ambiente portátil. Balcões e mesas, cozinha e banheiro, tá tudo lá, mas a área bem poderia estar lotada de quinquilharias chinesas num navio. Parado, o contêiner transporta apenas carne processada, carga descarregada direto na boca do consumidor.

Como em trocentos lugares poraí, em Canela tem uma loja bacana. Mix de butique e bazar, os dois contêineres nem parecem o que são. Por isso, atraem e abrigam uma clientela sofisticada, sobretudo porque foram instalados entre árvores. Apesar das formas retas, de quadrada a solução não tem nada.

Em canteiros de obras por todo o País, os contêineres viraram alojamentos. Em vez daquelas casinhas desconfortáveis de compensado agora os trabalhadores têm o desconforto dos caixotões de aço. Instalados num vapt-vupt, os contêineres têm a preferência da indústria da construção e da engenharia. Daí fazerem parte do cenário de desenvolvimento do Brasil. Na tragédia de Brumadinho, em algumas imagens dá pra perceber contêineres soterrados, sabe-se lá se com gente dentro.

Como gado atravessando os mares, gente é o que mais se vê em contêineres. Em pousadas cheias de turistas que querem experimentar a graça do confinamento. Em indecentes prisões modulares pra suprir a escassez de penitenciárias decentes. Em acampamentos de escorraçados migrantes planeta a fora. Em tantos casos de transporte de imigrantes clandestinos, asfixiados social e fisicamente.

Mas o limite para uso insensato de contêiner foi no alojamento dos atletas de base no CT do Flamengo no Rio. Foi a primeira vez que contêiner virou crematório. Provável que não seja a última, porque a justiça brasileira é incapaz de ser justa. Aliás, o time carioca recebeu apenas pêsames pelos 10 jovens mortos, como se não tivesse responsabilidade alguma com as instalações do contêiner. O mesmo tipo de impunidade do caso da boate Kiss, um contêiner muito maior.

Há uns 25 anos, no Rio, fui a um brechó social. Comprei um paletó espinha de peixe da C&A holandesa, parecia confecção de alfaiate. Meses depois foi revelado, à boca pequena, que aquele paletó fazia parte de toneladas de roupas, dezenas de contêineres, doadas por europeus para favelados cariocas. E que as primeiras-damas da ocasião e suas amigas socialites transformaram a doação em lucro pessoal. Quer dizer, até pra corrupção contêiner serve. Pelo monte de dinheiro que cabe, óbvio.

Autor
Fraga. Jornalista e humorista, editor de antologias e curador de exposições de humor. Colunista do jornal Extra Classe.

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