Fim do meu período nem tão sabático

Por Márcia Martins

No dia 30 de janeiro publicava aqui no portal a última coluna antes de tirar uns dias de férias que incluiriam mais do que o descanso normal de se afastar de tudo. Porque mais do que 30 dias de sossego total, eu precisava esquecer da eleição presidencial, do elevado número de feminicídios registrados no início do ano, dos desgovernos gritantes dos primeiros dias da administração de Jair Bolsonaro, das contas a pagar que só se acumulavam, da ausência de trabalhos extras, dos assassinos soltos e livres de Marielle Franco e de tantos outros dissabores. Por isso, os textos nos meus dias de presença no Coletiva desde então foram colunas que já haviam sido escritas e publicadas em outras ocasiões.

Necessitava, com urgência, do tal período sabático (isto é muito chique!). O termo vem do vocabulário hebraico e minha experiência de mais de 25 anos no bairro Bom Fim ensinou que significa repouso, tempo sem cultivo, sem problemas, saindo do modo automático e apostando numa vida de espiritualidade e paz. Como se fosse possível desligar das notícias que sangram as páginas dos jornais. Como se fosse possível não ver o grande erro que foi a eleição de Jair Bolsonaro (eu não fui culpada). Como se fosse possível ignorar que a taxa de feminicídio no Brasil é a quinta maior do mundo e que na primeira semana de 2019 pelos menos 21 casos foram registrados. Como se fosse possível viver num país onde as desigualdades e o preconceito só aumentam.

Pois no dia 9 de fevereiro, na formatura da Fabico da UFRGS, em que a minha filha Gabriela recebeu diploma em Relações Públicas, percebi que minhas intenções dificilmente seriam alcançadas. No discurso das formandas de Jornalismo, as lágrimas que caíam livres desde que vi Gabriela no palco, se avolumaram ao ouvir tantas palavras necessárias, preciosas, atuais e que devem ser repetidas e repetidas. As formandas falaram do Brasil que se escreve com S e não com Z. E como este BraSil deve ainda evoluir e corrigir distorções. Porque como disse a oradora Brenda Luiza Ferreira Vidal, formanda e amiga da Gabriela, "os retrocessos podem vir, mas não voltaremos atrás, porque cada vez que damos um passo para frente, o mundo sai do lugar".

Lá, em Porto Seguro, no sul da Bahia, no meio do meu sonhado tempo sabático, resolvi olhar o noticiário noturno, de forma despretensiosa, enquanto fazia hora para curtir um luau divino e maravilhoso na areia fofa da praia de Taperapuã. Foi quando soube da morte de Pedro Oliveira Gonzaga, 19 anos, no dia 14 de fevereiro, uma quinta-feira, ao ser espancado por um segurança do supermercado Extra, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Nem os gritos de sua mãe, Dinalva Oliveira, que mais tarde levaria Pedro a uma clínica de reabilitação para dependentes químicos, foram suficientes para cessar a fúria do segurança. Em quatro minutos de violência, a mãe não calou sua voz ao pedir para deixarem seu filho que já estava imobilizado no chão.

E nas férias merecidas que tive ao lado de minha irmã em Porto Seguro, ao sair do banho após um dia maravilhoso na praia de Coroa Vermelha, onde foi rezada a primeira missa em solo brasileiro, mais uma vez uma notícia que eu não queria ouvir perturbou o meu período sabático. Dias depois da morte estúpida do jovem Pedro, os jornais anunciaram a agressão sofrida por Elaine Caparroz, 55 anos. Ela foi espancada em seu apartamento, no Rio de Janeiro, durante mais de quatro horas por Vinicius Batista Serra, 27 anos, no primeiro encontro do casal que se conhecia pela internet há oito meses. Olhar o estado deplorável em que ficou Elaine e o seu apartamento manchado de sangue em todos os cantos após a tentativa de feminicídio embrulhou o estômago.

Pior do que mais uma tentativa de feminicídio é ler e ouvir comentários de pessoas julgando a mulher por ter permitido a entrada de um desconhecido no seu apartamento, ou por ter deixado que ele dormisse na sua casa ou ainda por ter aceitado um encontro com alguém tão mais jovem que ela. Mas até quando teremos que ver frases depreciativas classificando a mulher com o poder surreal de transformar a vítima em culpada? Mas até quando teremos que conviver com este machismo insuportável que ao homem permite tudo? Até quando teremos que suportar o preconceito enraizado em uma sociedade patriarcal e desigual?

Apesar de não conseguir desligar totalmente de tudo, voltei em tempo hábil de ver, mesmo que na telinha, o desfile campeão da Estação Primeira da Mangueira e lavar a alma com a arquibancada da Sapucaí cantando o samba "História para ninar gente grande". Quem sabe um dia começaremos a contar a história que a história não conta, o avesso do mesmo lugar, com versos que o livro apagou? Cada dia mais tenho certeza que é na luta que a gente se encontra e que chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês.

 

 

 

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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