Identidade seminal

Por Flávio Dutra

- Bom dia, seu Júlio.

O cumprimento do rapaz que circula de bicicleta todas as manhãs em Ipanema é tão previsível como as minhas caminhadas pelo calçadão. O rapaz era amigo do meu filho, já frequentou minha casa, mas acho que por não desempenhar outra atividade, a não ser pedalar o dia todo e todos os dias, criou na sua cabeça, ornada por dreadlocks, uma identidade que não corresponde a do caminhante.

Respondo a ele com a mesma civilidade, ora com "bom dia", ora com um gesto de positivo. É que já estou acostumado a ser vítima e agente de trocas de nomes. A cozinheira da firma, por exemplo, pede desculpas cada vez que me chama de "seu Sérgio". Tempos atrás, quando trabalhava como comprador de uma instituição, um veterano e formal vendedor de material de escritório alternava, na mesma negociação, propostas ao "senhor Jorge", "senhor Cláudio", "senhor Valter", além dos senhores "Júlio", "Sérgio" e, até, "Flávio".  Achava aquilo tão fantástico que não me atrevia a corrigi-lo.

Sei lá o que Jorge, Cláudio, Valter, Júlio e Sérgio têm em comum com Flávio.  Talvez porque sejam nomes curtos, no máximo sete letras, alguns com o mesmo acento na primeira sílaba e a mesma divisão silábica. Mas isso não é salvo conduto para sair por aí trocando o nome que a dona Thelia, minha santa mãe, escolheu para seu querido sexto filho e cujo significado é singelo, mas tem história: o nome Flávio tem origem a partir do latim Flavius, que se originou na palavra flavus, que quer dizer 'amarelo', 'dourado' ou 'louro', em referência à cor dos cabelos. O surgimento do nome tem como base o de uma família romana, de onde saíram três imperadores, a partir de Tito Flavio Sabino Vespasiano, que deu origem à dinastia conhecida como 'flaviana'. Origem dinástica, por essa nem eu esperava!

O histórico do nome não impede, entretanto, as trocas a que tenho sido submetido e que podem ser castigos para as quais tenho cometido. Um exemplo clássico é saudar o produtor cultural Esdras Rubin como Wesley Cardias, especialista em Marketing, que nem parecidos são. Menos mal que ambos já revelaram que não é exclusividade minha essa troca.

Só utilizo o nobre espaço proporcionado pelo Coletiva.net para tratar de uma questão aparentemente banal e pessoal porque defendo que reconhecimento e respeito à identidade seminal, no caso o nome de registro, tem - ou deveria ter - valor de cláusula pétrea para todos. A legislação brasileira já prevê a adoção do nome social por travestis e transexuais em substituição ao nome de registro, porque é ao novo nome que a pessoa se identifica, uma vez que corresponde ao gênero ao qual ela aderiu. Porém, daqui a pouco, surgirá um movimento para o reconhecimento a algo como Nome Ideológico para satisfazer os que agregaram Lula ou Bolsonaro aos seus nomes. Valeria, também, para os Guarani-Kaiowa. A Justiça Eleitoral já admite registro de candidaturas com tais composições. Só que essa turma tem mais apreço ao voto do que as suas identidades.

No meu caso, tão grave como as trocas, que não faço por maldade ou desrespeito, é o branco que me acomete diante de conhecidos, cujo nome me escapa. Chamaria a situação de 'Mal da Fila de Autógrafos', pois se acentua nos lançamentos de livros. Você divisa aquele velho conhecido chegando cada vez mais perto para receber os seus garranchos no livro que ele gentilmente adquiriu e o nome não vem à memória. Na recente sessão de autógrafos de 'A Maldição de Eros', ocorreu uma situação dessas com uma figura querida e conhecidíssima e nada de lembrar o nome. Fui providencialmente socorrido por um casal amigo que teve a feliz ideia de cumprimentá-lo pelo nome, antes que aportasse em mim.

Agora, estou me policiando e criando estratégias para não cometer mais gafes ou esquecimentos. Garanto que vou mudar ou não me chamo mais Júlio Sergio Claudio Valter Jorge Flávio Vieira Dutra.

*Por curiosidade, registro o significado dos outros nomes aqui mencionados. Jorge, na origem, significava agricultor; Valter, poderoso guerreiro; Júlio, pessoa jovem: Claudio, coxo, manco, daí o termo 'claudicante'; Sérgio, protetor. Olha, confesso que só trocaria meus dourados pela juventude do Júlio, o que talvez absolva o rapaz da bicicleta. Vá que ele ache o veterano aqui nem tão veterano!

Autor
Flávio Dutra, porto-alegrense desde 1950, é formado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), com especialização em Jornalismo Empresarial e Comunicação Digital. Em mais de 40 anos de carreira, atuou nos principais jornais e veículos eletrônicos do Rio Grande do Sul e em campanhas políticas. Coordenou coberturas jornalísticas nacionais e internacionais, especialmente na área esportiva, da qual participou por mais de 25 anos. Presidiu a Fundação Cultural Piratini (TVE e FM Cultura), foi secretário de Comunicação do Governo do Estado e da Prefeitura de Porto Alegre, superintendente de Comunicação e Cultura da Assembleia Legislativa do RS e assessor no Senado. Autor dos livros 'Crônicas da Mesa ao Lado', 'A Maldição de Eros e outras histórias', 'Quando eu Fiz 69' e 'Agora Já Posso Revelar', integrou a coletânea 'DezMiolados' e 'Todos Por Um' e foi coautor com Indaiá Dillenburg de 'Dueto - a dois é sempre melhor', de 'Confraria 1523 - uma história de parceria e bom humor' e de 'G.E.Tupi - sonhos de guri e outras histórias de Petrópolis'. E-mail para contato: [email protected]

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