La Costa

      Na noite da quarta-feira 23, conversava com minha família enquanto assistia ao noticiário sobre o assassinato do repórter fotográfico La Costa. Entre tantos aspectos …

      Na noite da quarta-feira 23, conversava com minha família enquanto assistia ao noticiário sobre o assassinato do repórter fotográfico La Costa. Entre tantos aspectos terríveis do episódio, pensávamos em como a mulher dele lidaria com a situação de contar aos filhos que papai não voltaria de um simples dia de trabalho, que sua presença alegre não mais habitaria este mundo e que a realidade que até então conheciam não existiria mais. E eu me perguntava sobre a validade de escrever numa hora dessas. Trata-se de uma homenagem ou de um artigo de oportunidade? Creio que esta dúvida deve estar sempre presente. Não conheço uma resposta.
      Mortes são sempre algo trágico porque definitivo. Já manifestei neste espaço minha opinião de que jornalistas mortos numa guerra não me impressionam muito mais do que quaisquer outras mortes ocorridas em campo de batalha. Vidas são vidas. Mas o La Costa não estava numa guerra, ou não pensava estar. Apenas cumpria mais uma pauta em sua exitosa carreira. Ou quem sabe ele soubesse estar cobrindo uma guerra. Quem sabe todos nós brasileiros devamos aceitar o fato de que vivemos uma guerra civil. A mistura de crime organizado com movimentos sociais distorcidos e banditismo fora de controle é explosiva o suficiente para caracterizá-la.
      Já estou farto (acho que todos estamos) do discurso social como justificativa para tudo. Que se resolvam os problemas, mas que não se os utilizem como desculpa. No Brasil de hoje agride-se, toma-se o que é de outro, invade-se prédios, ameaça-se e até mata-se em nome da exclusão. Quando escrevo ainda não sabem se o assassino era um assaltante que apenas se escondeu ali, se era um acampado que assaltou ou se era um "segurança" do "movimento". Pouco importa. A origem de tudo está na impunidade. Banditismo existe em toda a parte e em todos os momentos, e La Costa pode ter sido apenas outra vítima disso. Mas o descontrole do poder público sobre a situação é produto genuinamente brasileiro. As coisas se misturam. No Brasil de hoje é difícil identificar os bandidos.
      O tom emocional deste texto é inevitável. É a primeira vez que passo pela experiência de ter um ex-colega tão próximo assassinado desta forma, embora de outras formas já tenha vivido tal situação, como no caso de José Antônio Daudt, cujo assassino, aliás, continua impune e a sociedade acabou esquecendo. Mas o La Costa era companheiro de pautas na redação da Época. Ao chegar ou sair da redação ele tinha de passar pela minha mesa, e sempre vinha alguma sacanagem. Embora a revista contasse com um bom grupo de fotógrafos, eu gostava especialmente de trabalhar com ele pelo permanente bom humor, pelo espírito alegre e sempre pronto para ouvir ou fazer alguma piada. Como me relacionava muito bem com os coordenadores da fotografia, o Fortunato Siciliano e o Alexandre Reche, confesso que por vezes fazia até um certo lobby para que o escalassem comigo.
      A caminho de uma pauta nem sempre se fala sobre ela. Quando o assunto é banal e o trajeto longo, e em São Paulo eles tendem a ser longos, se acaba falando sobre generalidades. Recordo de uma conversa em especial que tive com La Costa no carro da revista enquanto seguíamos para o centro da cidade. Falamos sobre fraldas. Ele tinha acabado de ser pai pela primeira vez, estava feliz e orgulhoso, não parava de falar nisso, e minha filha mais nova era ainda um bebê. La Costa descobrira um local onde era possível comprar fraldas descartáveis a preços de fábrica. O motorista divertiu-se com nosso animado papo sobre fraldas.
      São diálogos assim, sobre coisas simples e fundamentais, que aproximam colegas de profissão bem mais do que o cumprimento de pautas. Em outras vezes é o próprio risco. Recordo de uma ocasião em que eu cobria o caso Ricardo Mansur, apelidado pela revista de "o falido feliz". Para quem não recorda, Mansur quebrou o Mappin e a Mesbla e, enquanto os ex-funcionários passavam fome, ele financiava times de pólo na Inglaterra ou jantava no restaurante das estrelas em Hollywood. De volta ao Brasil, dividia-se entre uma mansão no Morumbi, um dos pontos mais caros do Brasil, na qual dava festa milionárias e cujo pátio abrigava não menos de três ou quatro carrões importados, e outra em Helvécia, um bairro suíço em Indaiatuba, no interior de São Paulo, algo nababesco, parecido com a Casa Branca.
      Enfim, eu era o "setorista" de Ricardo Mansur naquele momento e fui a Helvécia tentar flagrá-lo. Ele não estava lá, mas o fotógrafo que me acompanhava, cujo nome não revelo porque não sei se ele concordaria (mas não era o La Costa), e que era muito magro, conseguiu entrar por entre as grades do imenso portão de ferro com brasão e tudo, para fotografar o imenso terreno e a tal mansão. A segurança viu e tivemos de fugir. Quando estávamos ainda numa estrada de terra de Indaiatuba fomos alcançados pelo carro dos seguranças que apontaram pistolas de grosso calibre, nos obrigaram a parar e, sob a ameaça de armas na cabeça, fomos interrogados e obrigados a entregar os filmes. Convencidos que de éramos apenas jornalistas, nos liberaram e voltamos para a redação. Não demos queixa, afinal, o fotógrafo invadira propriedade privada. Estávamos quites.
      O próprio La Costa participou desta reportagem fazendo campana em frente à mansão do Morumbi. Chamaram a polícia, que chegou logo em seguida para proteger o patrimônio espúrio. Ele teve de dar muitas explicações para não ser preso. Na quarta-feira 23 não havia polícia por perto, embora o clima fosse de absoluta tensão. Talvez não tivesse evitado sua morte, mas teríamos a sensação de que ainda há algum controle sobre a situação.
* Eliziário Goulart Rocha é jornalista e escritor, autor dos romances Silêncio no Bordel de Tia Chininha e Dona Deusa e seus arredores escandalosos e da ficção juvenil Elyakan e a Desordem dos Sete Mundos .
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 Eliziário Goulart Rocha é jornalista e escritor, autor dos romances Silêncio no Bordel de Tia Chininha, Dona Deusa e seus Arredores Escandalosos e da ficção juvenil Eliakan e a Desordem dos Sete Mundos.

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