O menino no aquário

Por José Antônio Moraes de Oliveira

 

 

"Fazer exercícios sem almejar passarelas,

trabalhar sem almejar o estrelato,

amar sem almejar o eterno". 

Mario Quintana. 

Costumamos associar poetas ao seu habitat natural - Jorge Luis Borges nos lembra uma venerável biblioteca em Buenos Aires; e Vinicius de Moraes um bar na orla de Ipanema. No caso de Mario Quintana, sempre  o veremos perambulando pelas ruas e praças de Porto Alegre. Mas na realidade, ele passava a maior parte do tempo na redação do jornal onde trabalhou de 1953 até 1984. Ficava por lá, na redação quase vazia, rabiscando em seu Caderno H.

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Quando criança, em Alegrete, o poeta não era menino de brincar na rua. Ao contrário, dizem que era tímido, mimado e sem muita vitalidade. Ele mesmo lembrava que cresceu "atrás de uma vidraça, como um menino no aquário". Aprendeu a ler cedo e falava um pouco de francês, que era o idioma usado em família. Aos treze, entrou para o Colégio Militar, em Porto Alegre, mas não foi um aluno aplicado. Gostava de Português,  Fran­cês e História e entregava as provas de Matemática em branco. De volta para o Alegrete, vai trabalhar na farmácia do pai, que o queria formado em Medicina. Mas foi em vão. Mário viaja para Porto Alegre em 1929, ainda sem saber o que fazer da vida.

Começou no jornalismo em O Estado do Rio Grande, do líder político Raul Pilla. No calor da Revolução de 30, em um ímpeto de patriotismo, se alista como voluntário. Permanece no Rio de Janeiro por seis meses; tem a vaga pretensão de ser herói, mas acaba destacado no Mangue, notória zona de prostituição.

De volta a Porto Alegre, é contratado como tradutor pela Editora Globo.

Seu primeiro trabalho foi Palavras e sangue, de Giovanni Papini, o início de uma intensa e produtiva carreira que rendeu traduções antológicas de Guy de Maupassant, Voltaire, Marcel Proust, Honoré de Balzac, André Gide, George Simenon, Virginia Woolf, Graham Greene, Joseph Conrad, Somerset Mau­gham e Aldous Huxley. Sem falsa modéstia, revela a um biógrafo que precisava de seis meses  para traduzir um volume de Marcel Proust, mas apenas uma semana para uma novela de George Simenon.

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Em 1940, publica pela Globo o primeiro livro de  poemas: Rua dos Cata-ventos, seguido de CançõesSapato Florido, O batalhão das Letras, Espelho e O aprendiz de feiticeiro, que recebe elogios entusiasmados de Manuel Bandeira e de Carlos Drummond de Andrade. Quando a Livraria do Globo lança a revista Província de São Pedro, lhe reserva uma página para poemas, prosa e pequenas histórias. Ele chama a página de Caderno H, pois a escrevia sempre na última hora - na hora H. Versos e historietas que reapareceriam no caderno de cultura do Correio do Povo. Ao selecionar material do Caderno H para seu editor, comenta:

"Às vezes fico surpreso de encontrar um poema muito bom. Mas em outros momentos, sacudo a cabeça e fico me indagando como fui escrever uma bobagem daquelas. Então, corrijo, emendo e alguns ficam irreconhecíveis. Mas outros são natimortos irrecuperáveis".

Os críticos literários demoraram a reconhecer o talento de Quintana. Seu lançamento nacional acontece apenas em 1966, com Antologia Poética, que ganha o Prêmio Fernando Chinaglia como o livro do ano. Em 1981, a Academia Brasileira de Letras lhe presta tardia homenagem, com o Prêmio Machado de Assis pelo conjunto da obra. O poeta era arredio e dizia que preferia ser alvo de um atentado do que de uma homenagem. Mas quando elas aconteceram, ele reclama, com a ironia habitual, "eram tantas que nem sobrava tempo para morrer"E quando o rotulavam de doce anjo, alertava que, dentro dele havia um anjo e um demônio que conviviam muito bem entre si.

Na verdade, podemos dizer que havia um terceiro habitante na alma do poeta. Era o misterioso Mister Wong, aquele que, em um concerto, enquanto o Doutor Jekyll ouve compenetrado a música e Mister Hyde arrisca "um olho e a alma" nos decotes das mulheres, ele simplesmente conta as carecas na platéia.                                                                 

Mario Quintana morreu em 5 de maio de 1994. 

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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