"A fila está andando"

Por José Antônio Moraes de Oliveira

 

O filósofo francês Jacques Maritain, que faleceu aos 90 anos, dizia que uma das grandes desventuras que nos assombram na velhice é a morte de amigos, irmãos e companheiros de juventude. O tempo passa rápido demais e a hora final chega para os que nos acompanharam pela vida afora. No entanto, ele registrava, com perplexidade, como para pessoas dotadas de espiritualidade, a morte do ente querido não é motivo para profundas lamúrias e pesadas tristezas. Bem ao contrário, encararam a morte com sabedoria e naturalidade, preferindo celebrar as alegrias e venturas que compartilharam em vida. 

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Cada um de nós conhece ou foi próximo de alguém que tem a leveza de levar a vida. Provavelmente, figuras humanas que nos passam a impressão que habitam um passado risonho e despreocupado. O que me faz recordar estórias antigas, como a vivida por um jornalista da Porto Alegre dos bons tempos. Seu nome, J.Thadeu Onar, um personagem único na cidade, conhecido por desfilar em ternos de linho com colete e bigodes encerados a Kaiser Guilherme. Um repórter de audácia, que sabia abrir portas e arrancar entrevistas de grandes figuras da época, de Getúlio Vargas a Oswaldo Aranha, passando por todos os inquilinos do Palácio Piratini. Ele dividia seu dia entre a Rua da Praia e a redação do Diário de Notícias, onde trabalhava.

Suas entrevistas eram controvertidas e levantavam discussões, o que ele saboreava gostosamente. Quando o jornal publicava uma entrevista com sua assinatura, ele envergava um impecável terno de riscas com colete e ia postar-se no Largo dos Medeiros, com o jornal dobrado debaixo do braço. Aos amigos que passavam, indagava se já haviam lido a entrevista - e sem ligar para o Sim ou Não, abria o jornal e lia a matéria de cabo a rabo. Aqui é preciso registrar, que naqueles tempos, o pequeno espaço onde a Rua da Praia cruzava com a Rua da Ladeira - o popular Largo dos Medeiros - era um lugar obrigatório para os porto-alegrenses.

Quem quisesse saber o que acontecia - ou estava por acontecer - o lugar era o Largo. Por ali circulavam políticos, jornalistas, vendedores de bilhetes, turfistas, advogados, gente bem de vida e outros nem tanto. Amigos e desafetos se encontravam, trocavam abraços, notícias e diz-que-dizes. Depois, uma pausa para o chá com torradas na Confeitaria Central ou um cafézinho no Haiti. Alguns preferiam uma caminhada ao longo da Praça da Alfândega, até a esquina da Rua Caldas Júnior, com uma eventual parada no salão de barba, cabelo e bigode no térreo do Grande Hotel, de onde se desfrutava de conveniente visão das janelas da redação do Correio do Povo, no lado oposto da rua.

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Rezam as lendas urbanas que foi durante uma destas flâneries que J.Thadeu Onar, acompanhado por Nínive Figueiró, seu colega de redação, cunhou uma frase lapidar, logo incorporada no jargão dos bares da boemia. Consta que quando Thadeu percebe, do outro lado da rua, um funcionário de conhecida casa funerária colando avisos de falecimentos nos postes e jacarandás da praça, interrompe abrutamente o passeio e atravessa a rua. Ele segue as pegadas do funcionário da Armador Postiga, lendo atentamente cada um dos avisos fúnebres. Concluída a inspeção, retoma a caminhada, justificando ao colega:

"- Como a fila está andando, eu gosto de conferir os nomes de quem morreu.

Assim, tenho certeza que continuo vivo e que minha vez ainda não chegou".

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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