A MPM e o uso da linguagem publicitária pela ditadura no Brasil

Por Marino Boeira

Em 1964, um golpe militar rompeu o sistema democrático no Brasil e instalou uma ditadura que se prolongaria por mais de 20 anos. Independentemente de outros aspectos políticos e ideológicos, uma das características dessa etapa da vida brasileira foi a ambição dos militares de estabelecer uma política de crescimento econômico que levasse o Brasil a uma posição de liderança na América Latina. É o chamado projeto Brasil Grande.

Vencida a resistência inicial dos opositores, concentrados principalmente nos meios intelectuais e sindicais do País, através da violência institucionalizada, era preciso que os governantes militares obtivessem o consentimento da população brasileira para a sua política ufanista.

Seguindo a política norte-americana durante a chamada "guerra fria", os estrategistas militares brasileiros (ex. Golbery do Couto e Silva) trataram de construir uma política de comunicação destinada a conquistar "corações e mentes" da população.

Sob o rígido controle da chamada inteligenzia militar, desenvolveu-se, então, um grande processo, cujo maior objetivo parecia ser o de neutralizar a efervescência cultural que dominara os anos 1950 e o início dos anos 1960 e substituí-la por um modelo totalmente despolitizado, no qual as conquistas pessoais sob o ponto de vista material seriam muito mais importantes do que qualquer atitude de solidariedade social.

Seria preciso estabelecer um canal de acesso a essa população, usando as novas tecnologias disponíveis, principalmente a televisão, mas não deixando de lado o rádio e os meios impressos. Havia, porém, uma dificuldade. Não existia ainda no País um veículo de cobertura nacional capaz de exercer esse papel, como ocorrera nos Estados Unidos, primeiro com o cinema e, depois, com a televisão. O processo de transformação da Rede Globo nesse grande instrumento estava longe de ser consolidado. As emissoras de rádio eram fortes apenas regionalmente (a grande emissora de cobertura continental, a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, estava num processo de decadência, devido ao crescimento da televisão). Os grandes jornais brasileiros, principalmente o Correio da Manhã, no Rio, e o Estadão, em São Paulo, que, inicialmente, apoiaram o golpe, passaram a manter uma posição crítica em relação ao regime. A solução encontrada foi descentralizar a divulgação das mensagens através de todos os veículos disponíveis no Brasil inteiro, mas manter sob o rígido controle o teor dessas mensagens. 

Isso só seria possível dentro do modelo criado pela propaganda comercial, onde, ao contrário do trabalho jornalístico em que as opiniões divergentes convivem muitas vezes no mesmo espaço, existe apenas uma verdade: aquela que o cliente paga para ser levada ao público.

Seria preciso encontrar uma agência de propaganda com uma estrutura nacional, grande o suficiente para oferecer serviços de qualidade em termos de planejamento, criação e produção para os meios eletrônicos e que estivesse disposta a aceitar a incumbência de realizar este trabalho para um regime não democrático.

Como as agências de propaganda estrangeiras não podiam prestar serviços ao Governo Federal e como não havia ainda o atual processo de licitação para a escolha das agências que atendem as contas públicas, a indicação natural foi a MPM, uma agência que vinha num processo de crescimento acelerado, atendendo a contas privadas, mas, também, contas públicas, estaduais e federais.

Criada em Porto Alegre, na década de 60, ela se expandiu pelo Brasil inteiro, assentada num tripé formado pelos seus sócios principais Antônio Mafuz (o M, de Porto Alegre), Petrôneo Correa (o P, de São Paulo) e Luiz Macedo (o M, do Rio de Janeiro).

A MPM montou, então, uma estrutura física e de pessoal gigantesca, capaz de atender às necessidades de comunicação do Governo Federal e suas agências (principalmente os bancos públicos) e, com isso, transformou-se por mais de 10 anos na agência de propaganda com o maior faturamento do País. Para os funcionários da MPM, o trabalho nas contas do Governo era como qualquer outro, a ser realizado com empenho e dedicação. Internamente, a agência oferecia excelentes condições de trabalho, tanto em termos de salário como de respeito a posicionamentos políticos, mesmo os mais críticos ao seu grande cliente nacional.

Ao dar suporte técnico ao projeto de comunicação do governo militar da época, a MPM, ainda que isso possa não ter ficado como um processo consciente para todos os seus executivos, ajudava a consolidar a imagem de um sistema político autoritário e na sua essência, desconectado das necessidades do povo brasileiro.

Esta, talvez, seja a grande questão que se coloca a partir da visão que podemos ter hoje daquele período. Não eram apenas os apelos institucionais cheios de ufanismo que caracterizaram a época, do tipo "Brasil - Ame-o ou deixe-o", "Meu Brasil - eu te amo", "Brasil - uma ilha de paz e prosperidade", "Brasil - 90 milhões em ação", "Brasil - ninguém segura este país". Era, também, uma ampla campanha em favor de um consumismo, só possível para as classes mais favorecidas e por pequenos bolsões da classe média ascendente nas grandes cidades brasileiras.

A opção pelo modelo rodoviário, com a construção de obras faraônicas como a Transamazônica, servia aos interesses do empresariado multinacional que se instalara aqui para produzir automóveis e gerar uma série de negócios paralelos, inclusive para as agências de propaganda que iam conquistando contas importantes como a da Volkswagen, da Fiat e da Ford.

Obviamente, a implantação desse modelo trouxe benefícios em termos de geração de empregos, principalmente na região do ABC Paulista, mas não servia aos interesses de uma enorme parcela da população - seguramente a maior de todas - que não participava dos ganhos gerados.

Num país com uma divisão de classes profunda, com milhões de pessoas vivendo de uma forma quase subumana, a aposta correta seria o governo investir em políticas que ampliassem a base de consumidores através de uma reforma agrária no campo, educação pública de bom nível e em bens de consumo compatíveis com as possibilidades financeiras da maioria. Em vez disso, o que se viu foi a produção de bens supérfluos que todos os anos deveriam ser trocados.

Para implantar esse novo modelo foi preciso que se forjasse uma comunhão de interesses entre as grandes agências de propaganda e os poderosos anunciantes que aqui chegaram. Isso vai provocar um forte surto de desenvolvimento técnico para o negócio da propaganda, tornando corriqueira a utilização de recursos cada vez mais sofisticados na elaboração do trabalho publicitário.

Mesmo na fase anterior à introdução dos computadores como ferramenta de trabalho diária dos publicitários, já começava a se alargar o fosso que separava as agências médias e pequenas daquelas que, atendendo às grandes contas publicitárias, principalmente de clientes multinacionais, dispunham de condições para investir nas tecnologias disponíveis. Grandes agências e grandes anunciantes chegavam a uma simbiose de tantos interesses comuns, que o publicitário Júlio Ribeiro, que levaria a conta da Fiat para MPM, diria certa vez que as agências se transformaram em jagunços das multinacionais.

Lembrando este período, Ricardo Ramos, em seu livro 'Do Reclame à Comunicação', escreve que "o santo era político, daqueles que se mantém em cena, inventando e promovendo o milagre brasileiro. Os profetas eram publicitários, anunciando o futuro na sua profissão".

A maioria desses "profetas" estava nas grandes agências, entre as quais pontificava soberanamente a MPM. Durante 10 anos, ela sustentou a primeira posição no ranking elaborado pela Revista Meio e Mensagem. Como o critério de classificação era o faturamento declarado, a MPM se empenhava em faturar mais e mais, não se importando muitas vezes em aceitar contas que na equação custo/benefício se mostravam deficitárias. Ser a primeira no ranking era um ponto de venda da agência.

Como os reis antigos, que construíam grandes castelos para demonstrar aos súditos todo o seu poder, a MPM construiu no Morro Santa Tereza, em Porto Alegre, uma sede colossal, onde, durante a década de 80, trabalharam mais de 200 pessoas. Simbolicamente, a construção ficava no alto de um morro dominando totalmente a cidade aos seus pés. Anunciantes se sentiam orgulhosos em ser atendidos pela agência, mesmo que coabitando muitas vezes com seus concorrentes mais diretos; os veículos, que dependiam das autorizações de mídia, cultivavam de todas as formas a sua atenção e os políticos mais importantes não cansavam de mostrar seu apreço por ela.

Era sabido que o então governador, Jair Soares, usava muitas vezes suas salas, ao final do expediente, para reuniões que exigiam um sigilo que o Palácio de Governo não podia assegurar. Não poucas vezes, o Presidente Figueiredo recebeu seus amigos para confraternizar em memoráveis churrascos, usando um dos restaurantes da agência. Tudo isso causava admiração, mas também inveja para os que viviam e trabalhavam na planície. Não poucos, esperavam que com o fim do regime ditatorial, o poder da MPM também desaparecesse.

No início, esperaram em vão. A redemocratização nascia sem rupturas através de um longo processo, onde as elites comandaram o jogo e impuseram o seu candidato, Tancredo Neves. Depois da anistia em 1979, os militares concordavam em deixar o governo desde que o poder não fosse entregue aos radicais da época. Por radicais, pensavam em Lula e, principalmente, Leonel Brizola.

Quando os oposicionistas lançaram a campanha das Diretas Já, pensavam somar pontos junto aos seus futuros eleitores, mas não imaginaram que em pouco tempo perderiam o comando do processo em meio a comícios cada vez mais gigantescos nas grandes capitais, culminando com mais de um milhão de pessoas no Rio de Janeiro. Ulysses, Tancredo, Montoro, Covas, todos eles sabiam que se houvessem Diretas Já, Brizola seria imbatível nas urnas. Por isso suspiraram de alívio - militares e caciques da oposição - quando a emenda em favor das eleições diretas não alcançou - por poucos votos - o quórum mínimo exigido.

Todos nós sabemos que não foi Tancredo quem assumiu, mas sim seu vice, José Sarney. Se os tempos de Sarney não foram de felicidade geral para o Brasil, os publicitários que conseguiam suas contas em Brasília, pouco tinham para se queixar. O governo era de composição e por isso todos os interesses eram respeitados. Mas é sintomático notar que, com o início do processo de redemocratização, o poder absolutista da MPM começou a decrescer e ela jamais voltaria a ter o brilho de antes.

Com a chegada de Fernando Collor ao poder, mudam radicalmente os parceiros que sentavam à mesa das grandes contas públicas do Governo Federal. Agências que poucos conheciam vão se apossando das fatias mais cobiçadas do bolo publicitário. Em pouco tempo, a MPM vai perdendo sua majestade e acabando vendida para Lintas, do grupo multinacional Interpublic, em 1991, encerrando um ciclo de poder imperial. Como sempre foi comum entre os empresários brasileiros, à primeira dificuldade do mercado, eles tratam de vender o patrimônio para o qual colaboraram centenas de profissionais e garantem um bolso cheio de dinheiro. Em 2003, a marca MPM é comprada pelo publicitário Nizan Guanaes, numa clara indicação de que se realidade tinha mudado, o mito pelo menos permanecia.

Mas até chegar a este ponto o Brasil já tinha mudado muito e as agências foram um dos agentes intelectuais dessa grande mudança. A ação da propaganda foi fundamental para estimular a compulsão às compras e institucionalmente, implantar um modelo de vida baseado no individualismo e na competitividade feroz entre antigos companheiros, para substituir a velha ideia dominante na década de 60, baseada no coletivismo e na solidariedade.

O público-alvo dessa verdadeira lavagem cerebral foi constituído pelos jovens, aproveitando a natural inclinação que eles têm de experimentar coisas e ideias novas. O novo era o modelo norte-americano do homem que se faz sozinho. Se, para eles isso tinha a ver com a sua tradição calvinista de prestar só conta a Deus, aqui isso parecia em desacordo com o nosso passado católico, onde até os anjos e santos eram convocados para mediar o contato com o Todo Poderoso.

Mesmo assim, como cantava Ellis Regina, "eles venceram", e hoje o que se vê é o culto do empreendedorismo, seja lá o que isso for, ensinado nas escolas como a meta a ser alcançada para que todos possam ser felizes. O processo de globalização, que vai fazer dos chineses os novos americanos do século XXI, deixa poucas esperanças de uma reconquista de um espaço mais ameno para divagações como estas que estamos fazendo aqui. 

Apesar disso, devemos fazer como Gene Kelly, que, mesmo debaixo da chuva, continuava cantando. Nossa canção pode ser chamada de uma ladainha nostálgica, mas ela busca cobrar uma maior consciência social dos que vivem da comunicação, inclusive os publicitários.

Autor
Formado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), foi jornalista nos veículos Última Hora, Revista Manchete, Jornal do Comércio e TV Piratini. Como publicitário, atuou nas agências Standard, Marca, Módulo, MPM e Símbolo. Acumula ainda experiência como professor universitário na área de Comunicação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e na Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos). É autor dos livros 'Raul', 'Crime na Madrugada', 'De Quatro', 'Tudo que Você NÃO Deve Fazer para Ganhar Dinheiro na Propaganda', 'Tudo Começou em 1964', 'Brizola e Eu' e 'Aconteceu em...', que traz crônicas de viagens, publicadas originalmente em Coletiva.net. E-mail para contato: [email protected]

Comentários