A Rússia já entrou em campo

Coincidência ou não, dois filmes sobre imensos ícones russos entraram em cartaz nesta semana, às vésperas da Copa da Rússia: "Anna Karenina: A História de Vronsky" (2017) e "A Morte de Stalin" (2017). Se, tanto o cultuado romance do escritor León Tolstói (1828 - 1910) sobre uma trágica história de amor no seio da aristocracia czarista, quanto o líder comunista, que governou despoticamente a URSS entre 1924 e 1953, fazem parte do imaginário universal a respeito do país que em breve sediará a Copa do Mundo, as abordagens desses dois símbolos da cultura e da história russas, propostas por essas produções recentes, não podiam ser mais distintas. Reverente à sua nobre matriz, "Anna Karenina" é suntuoso, dramático; "A Morte de Stalin" é debochado, não demonstra nenhuma empatia pelos personagens, escarnece de tudo. Estratégias narrativas quase antagônicas para retornar a dois marcos do passado da Rússia, resultando na tela em produções igualmente díspares.

O cineasta Karen Shakhnazarov veio nesta semana ao Brasil para acompanhar o lançamento de "Anna Karenina: A História de Vronsky". Realizador de títulos aplaudidos como "Cidade Zero" (1988) e "Tigre Branco" (2012), o diretor, roteirista, produtor e romancista é também, desde 1998, diretor-geral do Mosfilm - lendário estúdio russo onde Eisenstein, Dovzhenko e Tarkóvski, entre tantos outros, rodaram seus filmes, e que Shakhnazarov ajudou a reerguer e tornar novamente uma referência na produção audiovisual europeia. Convidado pelo canal estatal de televisão Rússia-1 a realizar, simultaneamente, um longa-metragem e uma minissérie sobre o clássico de Tolstói, Shakhnazarov decidiu unir ao texto as "Notas de um Médico sobre a Guerra Russo-Japonesa", de Vikenty Veresaev, distinguindo-se assim das cerca de 30 versões cinematográficas de "Anna Karenina" - a anterior foi dirigida pelo inglês Joe Wright em 2012 - e acentuando o ponto de vista masculino da história.

"Anna Karenina: A História de Vronsky" parte do encontro casual entre o médico Sergei Karenin, filho de Anna, e o oficial Vronsky, logo após o término de uma das batalhas da Guerra Russo-Japonesa, em um vilarejo da Manchúria, no início do século 20. Responsável por um hospital de campanha, Sergei resolve conversar com Vronsky para tentar entender as escolhas da mãe - que abandonou a família e sua alta posição na sociedade para viver com o jovem conde uma paixão intensa, cujo desfecho culminou no suicídio da protagonista.

Enquanto a produção televisiva está mais próxima do texto de Tolstói, o filme enfatiza a figura de Vronsky envelhecido, reavivando as memórias do passado e percebendo que sempre esteve preso a elas. "Anna Karenina: A História de Vronsky" é uma celebração de um tipo de cinema de qualidade exuberante, que quase não se vê hoje em dia, remetendo à época de ouro de Hollywood e a grandes mestres como Luchino Visconti - o belo Vronsky, por exemplo, encarnado pelo ator Max Matveev, lembra o Alain Delon de "O Leopardo" (1963), obra-prima do cineasta italiano, cuja memorável cena do baile também parece ter inspirado o filme russo. Já a lindíssima Elizaveta Boyarskaya encarna Anna com talento, emprestando complexidade à personagem e matizando-a entre vítima e heroína, mulher racional e amante passional, mãe ora amorosa, ora desnaturada. Por fim, as cenas de campo de batalha acrescentam um viés épico de "Guerra e Paz" à produção, funcionando como um contraponto ao luxo da recriação de época dos palacetes e ruas de São Petersburgo e Moscou - o conjunto serve de portfólio para o estúdio Mosfilm mostrar ao mundo sua versatilidade e seu profissionalismo.

Já "A Morte de Stalin" apela para a sátira para radiografar os estertores de um dos períodos mais sombrios da história russa. Coprodução entre Reino Unido, França, Bélgica e Canadá, a comédia dirigida pelo escocês Armando Iannucci lança um olhar impiedoso ao regime policial e ditatorial, criado na antiga URSS pelo tirano Josef Stalin (1878 - 1953), e aos burocratas ambiciosos e sem caráter que formavam sua corte. A ação começa algumas horas antes do derrame que causaria a morte de Stalin e segue pelos dias seguintes, quando são discutidas as formalidades para o funeral do "pai da pátria" e sua sucessão no governo. O clima de paranoia, incerteza e medo domina as conversas e intrigas entre os membros da "nomenklatura" soviética - um serpentário formado por víboras, que odeiam uns aos outros, como os altos funcionários Beria, Kruschev, Molotov e Malenkov.

"A Morte de Stalin" demora um pouco até encontrar seu melhor tom. A opção pela farsa ligeira na primeira parte fica aquém da pretensão iconoclasta do filme, lembrando aquele tipo de comédia televisiva que pretende mostrar os bastidores do poder com um humor rápido e meio bobo - não por acaso, o diretor e roteirista Iannucci é o criador da série "Veep", em que a comediante Julia Louis-Dreyfus interpreta uma vice-presidente dos Estados Unidos. No entanto, depois que Stalin efetivamente morre na trama, o filme ganha densidade ao mostrar, de maneira mais sóbria, as monstruosidades cometidas pelo ditador e seus perversos asseclas - sem abrir mão das piadas e da comicidade. O melhor de "A Morte de Stalin" fica por conta das caracterizações dos atores, com destaque para Jeffrey Tambor (Malenkov), Michael Palin (Molotov), Jason Isaacs (encarnando como um leão o marechal de campo Zhukov) e, especialmente, Steve Buscemi dando vida a um Kruschev fanfarrão.

Para os cinéfilos, "Anna Karenina: A História de Vronsky" e "A Morte de Stalin" já servem de preliminar para a Copa da Rússia.

 

Assista ao trailer de Anna Karenina: A História de Vronsky:

https://www.youtube.com/watch?v=Kuc_zruaLjo&feature=youtu.be

Assista ao trailer de "A Morte de Stalin":

https://youtu.be/8VnadbFnQAE

Autor
Jornalista e crítico de cinema, integrante da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Editou de 1999 a 2017 a coluna Contracapa (artes, cultura e entretenimento), publicada no Segundo Caderno do jornal Zero Hora. Neste período, também atuou como repórter cultural do caderno de variedades de ZH. Apresentou o Programa do Roger na TVCOM entre 2011 e 2015 e é é autor do livro "Mauro Soares - A Luz no Protagonista" (2015), volume da coleção Gaúchos em Cena, publicada pelo festival Porto Alegre Em Cena. Foi corroteirista da minissérie "Tá no Sangue - Os Fagundes", veiculada pela RBS TV em 2016. Atua como repórter e crítico de cinema no Canal Brasil.

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