Ao vivo do Calvário

Ou, conforme o subtítulo da tradução brasileira, O evangelho segundo Gore Vidal (Rocco, 1993). Fazia anos que eu não lia até o fim um livro de que não gostei e quase sem pular, fora trechos nos dois últimos capítulos. O motivo é simples: eu queria saber o que o Vidal pensava de Jesus, São Paulo, São Pedro e demais encrencas cristãs.

Não foi fácil. Vidal, ensaísta de uma ironia mortífera e interessado em História, como pode se ver em romances brilhantes como Criação (Nova Fronteira, 1981) e Juliano (Rocco, 1986), embarca aqui numa sátira cheia de brincadeiras adolescentes. Como o livro é de 1992, Vidal tinha 67 anos, idade em que as brincadeiras adolescentes ficam um tanto quanto deslocadas. Talvez o próprio Vidal, se não se atrapalhasse com a vaidade, percebesse com horror a semelhança de seu livro com aquelas comédias meio histéricas de Hollywood. Não há nada mais sem graça que um humor que não saiba conter a língua e não saiba parar pra olhar com calma uma cena.

Mas depois de uma peneira das mais árduas sobram algumas coisas interessantes. Jesus não era cristão, mas um sionista do tipo furioso, e seu irmão, São Tiago, mais um vendilhão frequentador do templo. Foi São Paulo que botou a cruz, grande logotipo, no lugar da Torá, adaptando a 'boa nova' pros pagãos em geral, entre os quais a coisa pegou mais que o bambolê em certas épocas. Como no livro há idas e vindas no tempo, podemos ver Jesus tiririca com as distorções de São Paulo de seu pensamento e metas.

São Paulo é pintado como fundador de muitas igrejas e grande arrecadador de fundos - sua trajetória se assemelha à dos pastores que vemos na tevê ou na política no Bananão, inclusive na espetacularização da pregação da fé. Ele também é o responsável pela tentativa de tornar palatáveis as inumeráveis e grotescas incoerências da biografia e da mensagem de Cristo. Ou você acha lógico que o filho de Deus morra por nossos pecados (que continuaram iguaizinhos séculos afora), ressuscite três dias depois, anuncie que voltará logo em seguida pro grande evento do fim do mundo e suba aos céus não se sabe pra quê, a não ser tomar fôlego? Por sinal, não voltou até hoje de manhã, pelo que pude ler nos portais noticiosos, que também não informaram o que o homem faz no céu todo esse tempo sentado ao lado do Pai, enquanto aqui até um meliante como Eduardo Cunha usa seu nome em vão. Tudo o que não faz sentido no cristianismo não é encarado como coisa que não faz sentido, mas como parte importante dos insondáveis propósitos divinos.

Por falar em propósitos insondáveis, São Paulo deu ainda um trato na ideia da trindade. Mas ela continua abstrusa. Não é fácil aceitar que alguém seja três em um, mesmo que nós mesmos sejamos muitos mais. E a troco, hein? O mais gozado nisso tudo é que o Deus judaico é vendido como o único e, claro, o verdadeiro. Aí, lá pelas tantas, vem alguém e diz peraí, meu, o Cara é único mas é três. Te mete!

A ideia judaica de um messias que viria, mandado por Deus, pra dar um jeito nessa pouca vergonha, estabelecendo uma nova era de paz e justiça social, é comentada várias vezes pelos personagens. Havia uma espécie de epidemia de messias. Todo mês alguém se apresentava como o Cara e os romanos, cheios de tédio, tinham de trabalhar. Vidal esqueceu a piada, aliás, feita por judeus, de que só entre eles essa ideia podia prosperar: que judeu não quer dizer pra mamãe que ela é mãe do filho de, nada menos, Deus?

Vidal descreve uma rivalidade entre São Paulo e São Pedro. São Pedro, apresentado como um velho burro e azedo, um fanático que só quer saber de pregar aos judeus, embora não descarte ajuda de velhas góis, desde que ricas. Talvez o retrato dele seja o mais próximo da verdade, que sei eu.

Os demais santos e santas são todos adúlteros, sodomitas e vaidosos - todos agem com o desembaraço de personagens de comédias ligeiras ou desenhos animados. Mais, são todos aproveitadores das fraquezas de viúvas ricas (parece que havia um grande estoque delas em Roma e arredores), que estavam louquinhas pra se converter ou pra ser assistidas por pregadores jovens e bonitões. Parece muito exagerado, não? Mesmo que a gente olhe a história do cristianismo e veja hordas de abusadores e gananciosos e trouxas de todos os calibres. Claro, parece exagerado por causa da falta de peso, de densidade desses personagens. Vidal dá a impressão de achar o caso tão idiota que nem merece o trabalho de um tratamento a sério.

O bom pra mim seriam fatos, muitos fatos. Mas dessa época sobraram poucos e tingidos descaradamente pela imaginação de gente maluca e cheia de interesses escusos. Na falta de fatos, eu gostaria de algumas intuições e análises sagazes, quer dizer, gostaria de encontrar o Vidal ensaísta. Porque ler um livro que basicamente diz o que já sei, que Deus é um grande negócio desde o começo, e de uma forma pouco atrativa, é dureza.

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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