Bagatelas

Por José Antônio Moraes de Oliveira

25/09/2025 17:02 / Atualizado em 25/09/2025 17:05
Bagatelas
 
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Quando jovem e incrédulo, eu não acreditava naquelas ciganas do Campo do Polo que se ofereciam para ler a mão e contar o que o destino nos reservava. Tinha certeza que tudo não passava de uma tola superstição. Até que um dia, acontece algo que me obriga a acreditar nos dons de vidente da minha Tia Julieta.      
 
Foi o famoso caso do primeiro bonde da Carris que descarrilou e matou o motorneiro.
 

A tia já havia prevenido a família para ter cuidado e evitar os números 2 e 22. Mas não foi levada à sério e seu alerta foi logo ignorado e esquecido. Então, em um belo dia, o bairro se agita de cima a baixo, com a notícia que um bonde Independência havia descarrilhado na Pinto Bandeira, despencando ladeira abaixo.  Corre-corre dos vizinhos, rádios são ligados a todo volume e a tragédia toma forma. O um bonde que despencara era um Gasômetro, mas ninguém sabia o que ele estava fazendo na linha Independência.

No dia seguinte, o pai nos mostra a primeira página do Diário de Notícias com as fotos da tragédia. O bonde descarrilhado era o de número 2.

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O turista não-acidental que chega à Bruges, na Bélgica, tem muito mais a ver do que imagina. É uma cidade marcada pela arquitetura medieval preservada e por um inestimável acervo de pinturas flamengas. No entanto,  A Madonna com o Menino, na Catedral de Notre Dame, por si, justifica plenamente a viagem. Sua história é fascinante - é a única escultura de Michelangelo Buonarroti que existe fora da Italia. Quando a esculpiu, o gênio do Renascimento tinha menos que 30 anos, mas estava no auge de sua fúria criativa.

A figura da Virgem repete a Pietà de Roma ? uma bela e jovem mulher segura a mão do Menino, como tentando evitar que ele se vá. Mas ela não sorri, pois pressente que o Menino não mais lhe pertencia. Michelangelo respeitava o Esquecimento.

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Meu amigo Alberto A. morava no último casarão que restava no nosso quarteirão. Tinha dois andares, muitos quartos e salas e um grande sótão, onde guardavam móveis antigos do tempo de seu bisavô, um estancieiro de Uruguaiana. Era divertido brincar de esconde-esconde com as gurias da casa, mas nos era proibido entrar na sala de jantar, onde as mães e tias tomavam chá com biscoitos de maizena e falavam mal dos mortos e ausentes.

O quarto do Alberto era no alto e nossa folia era jogar pedras nos telhados das casas vizinhas para ouvir a cachorrada latir.

Mas como não há bem que sempre dure, quando voltamos das férias de verão, levei um susto ao ver caminhões de A Lusitana estacionados na rua e homens de macacão carregando móveis do casarão amarelo. A mudança levou o dia inteiro mas só encontrei o Alberto na manhã seguinte ? mas pensando bem, teria sido melhor não o ter encontrado tão desconsolado.

O primeiro som que ouvi dele foi um suspiro doído, mas depois contou que o casarão seria demolido para dar lugar a um prédio de lojas e apartamentos. Fora construído pelo bisavô no tempo em que ainda haviam moinhos de vento nos morros e com cavalos pastando onde hoje fica a Redenção.

Bem cedo me arrependi daquela conversa, assistir ao desgosto do amigo e sem conseguir esquecer o travo amargo que me ficou na boca. Eu devia ter aprendido a lição - revirar coisas do passado acaba sempre em tristezas.

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