Cachorrada

Por Fraga

Lá vão 127 dias longe desse mundo contaminante. Se tivesse cão, teria que arriscar passear duas vezes ao dia até o WC na rua. Sem cão, aproveito pra revisitar meu canil mental. São décadas de lembranças caninas, uns vagos, outros inesquecíveis: cachorros da família, dos vizinhos, de amigos, até da ficção vêm abanar o rabo. (Em negrito, nomes predominantes).

Lá fora, mundo cão: gente tratada como cachorro, cachorro com nome de gente. Essa nova mania, forçada humanização, ameaça apagar a graça nominal de antanho. Pra batizar seus bichos, os donos tinham que recorrer ao imaginário popular.

O rol mais comum era o que enobrecia a cachorrada: Sultão, Barão, Duque, Fidalgo, Lord, Príncipe, Princesa, Rex. Ou dar algum poder a vira-latas: Campeão, Herói, Xerife.

O clima e a meteorologia davam uma penca de nomes, em geral homenagem à velocidade do cachorro: Chuvisco, Corisco, Corta-vento, Raio, Tufão, Ventania.

Lá da estratosfera, a conquista espacial mandou duas sugestões a incontáveis cães: Foguete, Sputinik. E, claro, a inúmeras Laica.

Também era inevitável, nos anos 50, valorizar o animal com patentes militares, como Piloto, Cadete, Capitão, Marechal, Major, Sargento.

Da cultura indígena, três nomes eram recorrentes: Tupi, Tupã, Xavante.

Entre os cães de guarda, que nem sempre tinham a brabeza requerida, os nomes tentavam impor medo: Atack, Bandido, Besta, Durão, Fera, Fujão, Furioso, Marvado, Monstro, Perigo, Roncaferro. Rude, Veneno, Urtiga.

Conforme a característica física, aparência ou comportamento, assim podiam variar: Bacana, Cheiroso, Dunga, Galante, Moleque, Peludo, Pinote, Sanguebom, Sossego, Torto.

Outros animais podiam ser inspiradores: Baleia, Dragão, Lambari, Leão, Tigre.

Comida rendia também: Batata, Drops, Farofa, Feijão, Filé, Gamela, Linguiça, Mel, Mocotó, Salame.

Nomes de ordem carinhosa, como Biriba, Darling, Dodô, Fifi, Joli, Poli.

A partir da pelagem, Alemão, Braseiro, Brasinha, Black, Branquinho, Brown, Carvão, Criolo, Ferrugem, Malhado, Neve, Pintado.

Quanto ao tamanho, esses: Gigante, Mindinho, Possante, Nanico, Tico.

Nas cadelas, caso à parte, clássicos eram os diminutivos: Belinha, Bolinha, Doninha, Doguinha, Mocinha, Rosinha, Tosinha.

Cinema e gibis influíam muito e obviamente: Rin Tin Tin, Lassie, Capeto, Milu, Pluto, Snoopy, Totó. E dois nomes mitológicos: Argos e Cérbero.

Hoje, os nomes pessoais tomaram conta das coleiras, sinônimo de preguiça pro batismo. Conheço Adolfo, Bete, Bóris, Bruce, Diana, Fritz, Hugo, Jaqueline, Meg, Lurdinha, Rasec (palíndromo de Cesar). Sem falar no Augusto, o cachorro que foi bolsonarista por alguns dias.

Mas bem ou mal batizado, com ou sem pandemia, o melhor amigo do homem recém encontrou sua recíproca: é o passeador de cães.

Autor
Fraga. Jornalista e humorista, editor de antologias e curador de exposições de humor. Colunista do jornal Extra Classe.

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