Cheiro de Marmelo

Por Fernando Puhlmann

13/06/2025 18:26
Cheiro de Marmelo

 ?O Amor já matou mais

Que qualquer doença?

Rumpelstiltskin

A vida não é só ?culo?, se tiver coragem, uma hora dá ?suerte?. João ouviu essa frase quando ainda era piá, sentado em um mocho na sobra de um cinamomo, à beira da cancha de Tava que ficava atrás do bolicho do Seu Bino. Tarde quente, gauchada reunida, tomando canha e dando risada. A cena nunca saiu da sua cabeça, a frase muito menos. Toda vez que algo dava errado na vida, ele repetia para si a expressão, mesmo que não lembrasse quem a tinha dito.

Enquanto o fusca azul cortava a cidade em alta velocidade, ele pensava mais uma vez nela. Anita era bonita, moça da cidade, costumes diferentes, realidades financeiras bem distantes, mas o amor os aproximara. Vindo do interior, conhecera ela na Rua da Praia, na saída da matinê, vestido rosa, rodado, cabelo comprido e cheiro doce de marmelo. Foi amor à primeira vista. Ela também gostou do que viu, ele tinha certeza.

Os amigos não o encorajaram muito, ela era filha de militar. Coronel. Ele, um pobre atendente de balcão em uma ferragem na Voluntários da Praia, mas o amor é cego, não vê essas diferenças e a partir desse dia ela não saiu mais da sua cabeça.

Todos os domingos ele vestia a melhor roupa e se postava na saída do cinema, não demorava muito para que as meninas começassem a sair, ela sempre a mais bonita e elegante.

No terceiro domingo tomou coragem, quando ela passou ele a cumprimentou, aceno tímido, nervoso, ela riu, baixou a cabeça e seguiu.

Ele se encorajou, era visível que ela tinha gostado da iniciativa, a seguiu de longe para descobrir onde morava, ela entrou em uma casa grande na Duque de Caxias, as outras meninas continuaram. Ele descobrira o endereço da amada.

Passou a caminhar pela Duque, na esperança de encontrá-la, até que a viu de longe umas três vezes, mas estava sempre acompanhada de uma Dama de Companhia, não teve coragem de se aproximar. Mas sentia que ela o notara, que também tinha vontade de lhe falar, porém não havia oportunidade. Descobriu o seu nome com o bolicheiro da esquina, entre uma conversa e outra o homem contou o nome, a idade e que o pai era bravo, não permitia nenhum tipo de intimidade com ela, muito menos a aproximação de estranhos.

Mas João não era mais um estranho, já haviam se cumprimentado e mesmo sem se falar, trocado juras de amor em pensamento.

João resolveu se apresentar à família, os amigos disseram que ele estava surtando, João apenas riu, ninguém entende os apaixonados.

Sábado era dia de baile no Comercial, toda a sociedade de Porto Alegre estaria lá, ela com certeza iria, ele também, só faltava um detalhe, ele não era sócio do clube, mas o destino sempre torce pelo amor e ele tinha certeza que conseguiria entrar. Chegou na frente do clube, ficou esperando alguma chance, as famílias passavam pela porta e adentraram o hall, ele na calçada. Começou a ficar nervoso, não a vira ainda, mas sentia que viria. O tempo ia passando e ele já estava acreditando que o destino o abandonaria, então ela apareceu, linda, em um vestido azul claro, cabelo com coque, maquiagem leve. Vinha rindo, de braços dados a um rapaz vestindo farda militar de gala. A dor da traição explodiu em seu peito, como ela fizera isso com ele? E todas as juras de amor? E todos os olhares trocados com promessas de uma vida a dois. O sangue subiu, em dois passos ele estava à frente do casal, o rapaz que a acompanhava não entendeu de onde ele surgiu, Anita se assustou e recuou, traidora, covarde, mas dela ele cuidaria depois. Tentou acertar um soco no acompanhante que o ?corneava? na frente de todos, errou o golpe, o outro era grande, forte e rápido, lhe derrubou com um chute e subiu em cima dele. João era pequeno, mas fora criado na rua, brigas faziam parte do seu dia a dia, consegui sair de baixo, ficar de pé e puxou a faca, a mancha vermelha coloriu o casaco branco, foi um golpe só, entre a segunda e terceira costela, direto no coração.

O alarido se espalhou, Anita gritava protegida pelo pai e por amigos que acudiram, João sentiu que ia levar a pior, correu, atravessou a praça em direção ao Cais do Porto, uma multidão atrás. Pulou no banco do carona de um fusca que estacionava, colocou a faca, ainda suja de sangue, no pescoço do motorista. 

- Toca. Foi a única palavra que disse.

Dali para frente só viu a cidade passar. 

A dor e o cheiro de marmelo que vinha dela o consumiam.