Como ajardinar um jardim sem jardineiro nem jardinagem

Vocês aí ? e nunca eu aqui ? sabem bem como fazer florescer coisas defronte às suas casas, em suas avarandadas varandas, nos seus …















Vocês aí - e nunca eu aqui - sabem bem como fazer florescer coisas defronte às suas casas, em suas avarandadas varandas, nos seus alpendres alpendredados ou em suas sacadíssimas sacadas. Minha única contribuição é informar vocês, que nao conhecem a flora que eu conheço, quais plantas não plantar: as que têm o desplante de desmanchar prazeres botânicos, de enfear canteiros, de deflorar as expectativas primaveris. Selecionei alguns tipos típicos:


Escapulidas - Notáveis pela ausência. A qualquer momento, se retraem, encolhem, somem do canteiro, caule e tudo, como se jamais tivessem existido ali.


Delongas - Quem tiver paciência que me ignore. Essa cacheada espécie é um teste de devoção ao cultivo. Dificilmente se assiste ao desabrochar das delongas. Se quiser tê-las, plante os bulbos e aguarde 3 ou 4 primaveras, quem sabe.


Antagônias - Se flores têm algum temperamento, são essas. Urtigas crescem longe delas. Pela petulante conformação da corola, causam uma instantânea antipatia em quem as olha.


Impropícias - Famílias educadas, com crianças ou pessoas idosas, devem evitar o plantio dessas mimosas florzinhas. Além dos estames e pistilos semelhantes a partes humanas que nem posso sugerir aqui, se esfregam umas às outras até atingir aquilo que muitos casais nem sempre conseguem.


Promísculas - Lembram, no efeito escandaloso em gente moralista, as impropícias. Porém são mais ativas: se insinuam para qualquer outra flor por perto, chegando a despetalar as mais frágeis. Uma vergonha em cor púrpura.


Desabonas - Devido à má aparência das pétalas, às cores desinteressantes, às folhas murchas e aos galhinhos pendentes, as desabonas prejudicam a reputação de qualquer jardineiro. As pessoas farão tsk, tsk, tsk para os seus canteiros.


Lassidônias - Você acorda radiante, corre para admirar seu jardinzinho, e o que vê? Nao vê. Na seiva dessa planta há um hormônio, ócionila, que faz inverter seu crescimento: elas imbrotam.


Condolências - A não ser que alguém tenha uma floricultura próxima de um cemitério, essa flor é um drama para o cultivo. O simples manuseio faz a pessoa cair em prantos.


Pústulas - Sensível ou insensível, seu olfato não vai apreciar o olor dessa flor.


Deplorávias - Floridas ou não, se mostram sempre em péssimo estado de conservação, por mais bem conservadas que estejam. Nem pense em oferecer um ramalhete à namorada.


Negaceias - Embora singelamente atraentes, são impossíveis de colher. Com hastes ágeis, enganam mãos, escapam dos dedos. E pra que servem flores que não podem se abuquesar para a mesa da sala?


Paródias - Dotadas de extraordinária capacidade mimética, imitam muito bem verbenas, açucenas, dracenas e outras flores que rimem com essas. Mas, basta um segundo olhar para confirmar a falsidade. Como por desencanto, a admiração desaparece na hora.


Usurpas e deturpas - Parasitas do mesmo ramo, têm hábito predador: se enfiam sob a terra, brotam junto de outra flor e assumem seu lugar, além de modificar as características florais das demais, desde rosas até antúrios.


Arcaicas - Flores antigas, nem se usam mais. Com cálices e sépalas demodês, provocam enfado em quem as vê. A variedade mais comum é a prosaica, que viceja até entre mosaicos.


Firulas - Espécie exibicionista. Carente e dependente da atenção do dono do jardim, tem movimentos chamativos. Um permanente incômodo, sobretudo para aqueles que têm ótima visão periférica.


(Texto publicado originalmente em 28/10/05, aqui mesmo)


É primavera e eu nem notei.


Esse perfume na brisa é sem par:
há menos lixívia negra no ar?
Com o brilho das águas do rio apodrecido,
a poluição ganhou maravilhoso colorido.


Esse clima da Natureza é fantástico:
serão os canteiros das flores de plástico?
Ou as aves que voam em debandadas,
a fazer ninhos nas árvores podadas?


Esse verde das ruas é encantador:
o musgo das sarjetas já desabrochou?
Frutas e verduras também deram vida,
Como se houvesse nelas novo pesticida!


Esse sol que vem cedinho nos iluminar:
quase faz esquecer a ameaça nuclear?
E os desertos crescendo ao nosso redor,
têm um não-sei-quê de mal menor.


Essa estação é toda feita de paz:
é mais suave a extinção dos animais?
E as pessoas matam com todo carinho,
os semelhantes que atravessam seu caminho.


É. É Primavera e eu não notei.
Como eu sou insensível!


(Publicado originalmente há mais de 20 anos.
Infelizmente, nao ficou nem um pouco desatualizado)

Autor
Fraga. Jornalista e humorista, editor de antologias e curador de exposições de humor. Colunista do jornal Extra Classe.

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