Das pequenas felicidades nestes dias de pandemia

Por Márcia Martins

Desde a metade de março, os dias ficaram bem complicados e as noites difíceis de serem dormidas sem o auxílio luxuoso de um drink, uma boa taça de vinho ou um comprimido de ansiolítico. Com o agravamento da Covid-19 no Brasil e o necessário confinamento - apesar de um certo negacionismo de determinadas autoridades - as pessoas precisaram reinventar rotinas, improvisar atividades, reorganizar agendas e aprender e dominar a linguagem das reuniões virtuais e lives. Tudo para não mergulhar na mais profunda depressão, imergir nos altos e baixos do desespero e se entregar aos gritos, lágrimas e desesperança.

Não só pela completa solidão, uma vez que cada família hiberna na sua casa. Não só pela saudade dos familiares, já que os encontros para trocar afetos estão proibidos. Não só pela ausência presencial de comemorações - Páscoa, Dia das Mães e aniversários - porque somente as felicitações virtuais são aceitas. E nem só pela vontade de reunir amigos, convidar para uma rodada de chope no bar do bairro ou aceitar uma companhia para uma caminhada. Mas, principalmente, porque a cada dia o número de mortos em decorrência do Coronavírus nos assusta, a vacina ainda irá demorar e o cenário é realmente preocupante.

Por isso, aprendi neste período de confinamento, a colecionar pequenas, mas consistentes felicidades com o objetivo de me fornecer combustível, energia e fermento para suportar mais uns 90 ou 130 novos dias de distanciamento. Afinal, completei na terça-feira, 4 de agosto, 142 dias de isolamento, sem abraçar a filha, sem passear com o neto canino Quincas Fernando, sem poder saborear as guloseimas feitas pelo mano Nando e cunhada Flávia lá em Butiá, sem sair do apartamento exceto para levar o lixo na rua.

Uma destas alegrias que revigoram para suportar mais uns meses de total isolamento foi o convite da Associação Riograndense de Imprensa para entrevistar um jornalista na terça-feira à tarde, de forma virtual, junto com outros colegas para um projeto da ARI (que não sei se posso divulgar). Pois o entrevistado - não vou dizer o nome - foi meu primeiro chefe lá por 1983 quando ingressei no mercado da comunicação social como profissional com carteira e matéria assinada. Ouvir dele que se lembrava de mim e me considerava uma jornalista extremamente competente me deu um novo ânimo.

Na frente (mesmo que separados pela tela do computador) de um homem que me entregou as primeiras pautas, corrigiu pequenos erros digitados na máquina de escrever Olivetti e me indicou, no meio daquele redação enorme e com um desenho um tanto estranho, uma mesa para que eu ocupasse, me renovou a certeza da escolha da profissão. E ao final da conversa, quando ele confessou ser meu leitor aqui no site Coletiva.net, foi como se nada de ruim no mundo lá fora pudesse me atingir.

E na mesma terça-feira, um pouco antes da tal entrevista, a porta do meu apartamento foi arrombada pela alegria esfuziante da minha filha Gabriela que viera entregar meus remédios de uso contínuo que ela retira na farmácia, desde março, a fim de que eu não descumpra o distanciamento. E, ao invés de ficar brava porque eu esquecera de lhe passar uma receita, ela saiu esbanjando o seu sorriso mais sincero e perfeito para retornar à farmácia e buscar o remédio que havia faltado. Sabendo que tinha compromisso (a entrevista citada acima), ela perguntou meigamente se eu podia descer ou se já estava na agenda.

Mais tarde, como fazemos todas as noites, nas conversas telefônicas com a família que mora em Butiá, meu mano revelou que a cunhada Flávia havia feito "pé de moça" e "rapadura de leite", uns dos meus doces preferidos. E, assim, como quem não quer absolutamente nada, indaguei se ele não tinha consulta médica ou exame agendado em Porto Alegre na sexta-feira. Ao ouvir a resposta positiva, fiz ele prometer que irá me alcançar, pelas grades do edifício, um pote com provas do pé de moça e da rapadura de leite. E desde então, já estou salivando de vontade de provar a iguaria.

Então, as coisas não estão como se gostaria. As notícias do Coronavírus não são as mais animadoras. Mas, se vamos ter que permanecer mais uns meses no total confinamento, por que não exaltar e agradecer as pequenas felicidades que surgem e que nos alimentam para viver mais firmes e empáticos no isolamento?

 

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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