Desapego, desalento e descobertas

Por Flávio Dutra

23/01/2023 14:22
Desapego, desalento e descobertas

O tema do desapego já esteve presente mais de uma vez nos meus escritos. Em trocas de emprego - e foram muitas - fazia um levantamento sentimental, doído mesmo, do que ficava para trás ou era descartado, aí incluídos bens materiais e relações afetivas. Sou facilzinho de me apegar.

Agora me vejo novamente diante de mais uma situação de desapego, por conta da mudança de residência, 42 anos depois de fincar os pés na morada da Osmar Meletti, no Espírito Santo. Os filhos cresceram aqui e agora são os netos que preenchem os espaços de alegria e travessuras. Não se joga fora uma história dessas, mas não vou apelar para o coitadismo, só me permito um tantinho de melancolia e de desalento, quando o novo ciclo se inicia. 

Pelo menos é um tempo de redescobertas. No vasculhar de gavetas e armários, achei um tênis novinho em folha, comprado numa promoção, fotos antigas da família e de situações profissionais, manuais das Copas do Mundo, relatórios e prestações de contas, matérias importantes de quando fui um aplicado repórter, documentos que um dia julguei que iria precisar e até uma nota de 20 pesos uruguaios que nem imagino quanto vale na conversão? Entretanto, perdi a esperança de resgatar a minha coleção do Na Onda, o jornalzinho mimeografado que editávamos nos anos 1960 no bairro Petrópolis e que, de alguma forma, foi a origem da minha vocação jornalística. Para falar a verdade, encontrei apenas uma folha perdida do hebdomadário (o Google explica), da 17ª edição, lá pelos idos de 1968. 

O descarte começou há duas semanas e nada é mais angustiante do que o desapego, a escolha do que segue com a gente vai e do que vai para doação ou reciclagem. Com dor no coração, quase derramando uma lágrima furtiva, mas pressionado pela proximidade da mudança para uma morada menos espaçosa, fui obrigado a me desfazer de algumas das minhas preciosidades, fruto de impulsos consumistas, especialmente camisas azuis e livros empoeirados. Junto, foram calças que já não conseguia abotoar na cintura, casacos para todas as estações, suéteres que parecem terem encolhido,  sapatos, sapatênis e chinelos que, admito, nem lembrava mais da existência. Roupas, calçados e livros tiveram destino apropriado: foram doados a pessoas ou instituições. Que façam bom uso. 

Tive o cuidado de preservar alguns itens de maior valor afetivo para o futuro Memorial Flávio Dutra, que certamente a família, amorosa e reconhecida que é, vai criar quando eu me for. O que ficou significa também um mergulho emocional no passado mais distante, no reencontro com boletins escolares de notas apenas satisfatórias, cadernos, um para cada matéria, com uma caligrafia tão mais caprichada do que a atual, e fotos, não muitas e todas em preto e branco, daqueles tempos sonhadores e de menos responsabilidades. Cada item resgatado remeteu a um recorte da vida, nem todos felizes, mas todos somando experiência. O baú de memórias é isso, o depositário das experiências acumuladas e aí o desprendimento é bem mais difícil. Por isso, acumulador compulsivo de saudades, guardei mais recordações do que os espaços vão permitir. Mesmo assim, não abri mão de levar minha coleção de mais de 100 canecas, iniciada com uma peça de homenagem de ex-parceiras de trabalho. Haverá um merecido cantinho para elas na nova morada.

O que me consola neste momento melancólico é esta frase atribuída a um grande escritor: ?Afinal, se coisas boas se vão é para que coisas melhores possam vir. Esqueça o passado, desapego é o segredo?. Voto com o relator, que seria Fernando Pessoa. E se não for ele, assino embaixo assim mesmo, para deixar de ser, com esse compromisso, o acumulador obsessivo de já inúteis retalhos do passado.