Diário do centésimo dia de confinamento

Por Márcia Martins

Ao completar nesta terça-feira, 23 de junho, o meu centésimo dia de confinamento total, sem esta conversa de distanciamento controlado e colorido de bandeiras no mapa do Estado, percebo que mudei muito no decorrer deste período. Trancafiada dentro de um pequeno apartamento há 100 dias (não sei se ainda ensinam os números cardinais) e obrigada a conviver só com a minha companhia (que até é agradável), redimensionei gestos pequenos e os eloquentes, ressignifiquei o tamanho da palavra responsabilidade e recalculei a importância da vida. Não sei se o meu novo normal será semelhante ao de muitos que cumpriram o isolamento. Apenas sei que o afastamento dos meus afetos e a convivência comigo me fizeram crescer de uma forma mais bonita.

Depois de aprender a conversar com a Márcia desde que ela acorda até a hora em que vai dormir já no meio da madrugada, compreendi que ela é uma pessoa que soma, ao longo de sua vida, bem mais acertos do que erros. É que, às vezes, é necessário um susto de uma pandemia para se entender a real importância dos fatos positivos no nosso currículo e ver que eles têm mais peso que os negativos. Ao planejar os dias e noites de forma a torná-los mais agradáveis e menos tediosos, foi possível entender que a Márcia é uma pessoa com inúmeras habilidades, predileções e que, na hora do aperto, vejam só, ela até conseguiu trocar uma lâmpada e arrumar pequenas encrencas na casa que antes lhe apavoravam.

Conheci uma Márcia da qual me orgulho (e acreditem, não tem nenhuma arrogância ou prepotência nisso). Quando o meu médico, no dia 16 de março, receitou que eu ficasse fechada dentro de casa, imaginei, num primeiro momento, que seria no máximo por uns 30 dias. Ou que pequenas escapadinhas poderiam ser a solução. Nenhuma das duas alternativas, no entanto, apresentou-se viável. E vi, lá pelo final de abril, que os dias de confinamento seriam mais do que a minha projeção inicial, que o distanciamento dos carinhos dos meus familiares e amigos seria bem superior à quantidade de emoções que eu havia guardado em algum lugar do coração e que, para superar tudo, eu teria que redobrar meu estoque de resignação.

Aprimorei, arrisco dizer, o meu senso de responsabilidade com o coletivo, com os que precisam sair - no meio desta doença desconhecida - para ganhar o sustento do pão de cada dia. E, em nome destes, usei meu privilégio de aposentada para permanecer isolada e diminuir qualquer possibilidade de contágio e transmissão. Desenvolvi uma empatia imediata com todos os indivíduos que aderiram ao confinamento total. Passei a ser uma crítica feroz de quem burla o distanciamento sem a mínima necessidade, ou porque pode, como eu ficar em casa, ou foi dispensado do trabalho, e coloca em risco a saúde de familiares mais idosos e expõe filhos e amigos ao perigo fingindo que está tomando os cuidados.

Mas, depois de ensaiar algumas rusgas mais emblemáticas com pessoas que adoro, assimilei que, no final de tudo, cada um terá um preço a pagar pelo comportamento adotado e que isto já deverá ser bem penoso. Porque poderá significar vidas perdidas. Porque poderá representar parentes enterrados sem o abraço dos familiares. Porque talvez resulte no adoecimento de alguém próximo. Então, não serei eu a cobrar pela irresponsabilidade de quem não entendeu a crueldade do Coronavírus. O saldo de mortes, que infelizmente nos surpreende a cada dia, já será necessário para cutucar a consciência de cada um.

Juro que não é fácil. A Márcia carente quer usufruir do contato físico dos familiares, deseja sair para reuniões, precisa muito fazer cafuné nos cabelos da filha e gostaria de levar o cusco Quincas Fernando para passear. A Márcia carente sonha em passar os finais de semana na casa do meu irmão, em Butiá. A Márcia filha gostaria de visitar o pai que está há um mês na UTI e que se encontra quase num quadro irreversível. Mas, quando tenho algum ataque de irresponsabilidade, escondo as chaves do apartamento, no meio de alguma roupa no fundo do armário e elas só aparecem bem mais tarde, ao ter certeza que o bom senso já está imperando.

Não sei quantos dias ainda ficarei isolada. O tempo necessário. Não sei quantas datas comemorativas ainda terão festas virtuais. O tempo exigido. Não sei ainda a quais crenças terei que apelar. Todas serão aceitas. E prometo que irei cumprir o confinamento necessário para ajudar a frear a pandemia.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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