Dinheiro, não, como dizia mano Caetano

Na faxina de pastas no computador, achei o texto abaixo sobre incentivo à leitura. Não sei quando o escrevi, nem pra quem, nem se chegou a ser publicado. Sei apenas que repeti esse mesmo discurso várias vezes, em muitos lugares, daí que por pouco não o deletei. Então lembrei da Feira do Livro deste ano. Pelo silêncio estrondoso que me cerca, começo a suspeitar que o prefeito alcançou sua meta: não vai haver feira. Como o Bananão é a terra em que as autoridades insistem em incentivar a leitura desde que não dê trabalho, como lidar com livros, alunos, professores e escritores, me perdoem a repetição, mas preciso insistir.

"Ninguém contrata um instrutor de natação que não sabe nadar. Mas temos professores que não leem."

Ana Maria Machado, Revista Escola.

Mario Vargas Llosa, o badalado escritor peruano, pagava para que os filhos lessem uma hora por dia. O que é que vocês acham? A mim parece uma ideia idiota, mais idiota ainda vinda de um escritor. Veja, se ele, um escritor, não acredita no poder de sedução dos livros, se não acredita que a leitura pode ser uma das formas da felicidade, como dizia o velho e bom Jorge Luis Borges, quem vai acreditar? Os pais, os professores? Pior, cem vezes pior: como uma criança vai acreditar nessa sedução, nessa felicidade, se precisa ser subornada para conhecê-la?

Claro que os pais em geral não apelam como o Llosa. Mas, cientes da importância da leitura - pra começo de conversa, não há outro meio para desenvolver certas áreas do cérebro, nem de se conhecer integralmente a herança cultural da humanidade -, esses pais põem muitos livros, revistas e jornais à disposição dos filhos, na esperança de que algum deles funcione como anzol? Não. Eles esperam que a escola faça isso.

A escola também não oferece dinheiro para as crianças. A escola joga mais duro: dá notas. É, isso mesmo: chantageia, ameaça. Se você não ler, leva zero. Se não ler, vai se dar mal no vestibular. Depois não venha dizer que não avisei.

Claro que exagero. Há muitos professores sensíveis e criativos, que se viram, às vezes contra a total falta de recursos. Mas há muitos perdidos, que não têm ideia de que santo pode ajudar. E há aqueles agarrados nas suas velhas certezas como cracas no casco de navios naufragados.

Vocês já perceberam onde eu quero chegar. Não se motiva a leitura com coisas exteriores à própria leitura. Dinheiro não funciona, notas não funcionam, ameaças não funcionam. Só um bom livro funciona.

Mas, atenção, o que é um bom livro? Acho que é aquele que nos emociona: nos faz rir ou chorar, que nos dá dez respostas e cem perguntas novas, que podem ser o combustível da curiosidade. Isso quer dizer que o livro bom varia de pessoas para pessoa, varia de idade para idade. O bom livro pode nem ser um livro importante literariamente. É muito misterioso o que nos toca num livro, num autor. Eu, por exemplo, não troco os romances de ficção científica de Philip K. Dick pela obra completa de Balzac. O sal que falta no meu corpo está em Dick, não em Balzac. Ou um dos sais. Sei que isso é difícil de entrar na cabeça dos que fazem os currículos, mas a vida não costuma pedir licença pra burocracia.

Acho que incentivar a leitura é antes de mais nada proporcionar os meios. É botar bibliotecas inteiras à disposição. É descobrir quais os interesses dessas crianças e correr atrás, sem preconceito nenhum, ciente da bendita diversidade humana. É ensinar a se aproximar dos livros: folhear, espiar a orelha, a contracapa, ler um trechinho. É não cobrar nada, mas criar a oportunidade para a discussão, para a crítica. É, como diz Ana Maria Machado, nunca indicar um livro que você mesmo não leu, ou de que não gostou. Nem esperar que todos gostem do que você gosta, acrescento eu. Por fim, para ensinar a ler o professor tem de ser um bom leitor, o que não quer dizer apenas saber o que presta ou não presta em literatura, mas ter paixão.

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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