Ensinamentos essenciais para os sobreviventes

Por Márcia Martins

No final deste período de isolamento social ou confinamento, que deverá superar, no Brasil, os 15 dias previstos inicialmente e, tudo indica, chegará aos 30 dias ou mais, se permanecer o ritmo da evolução da propagação do Coronavírus, os sobreviventes sairão desta etapa com ensinamentos essenciais para viver em sociedade. Refiro-me aos sobreviventes porque, apesar da adoção de medidas para tentar frear o avanço da doença no País, a transmissão já é comunitária em alguns Estados e o número das mortes crescem. E, infelizmente, no final da noite de terça-feira, foi confirmada a primeira morte de uma paciente com Covid-19 em Porto Alegre.

Quem ultrapassar com saúde esta pandemia, saberá, por exemplo, como é importante semear e alimentar os laços de afetos, sejam com os familiares, com os amigos e até com os vizinhos. Da família mais próxima, recebemos o apoio, a força e o empurrão necessários para não nos afastarmos de casa, para não colocarmos o pé na rua e o amor distribuído através de telefonemas ou mensagens no whats. Das amigas, o bom dia, os conselhos para observar os sinais do corpo, a fim de controlar qualquer princípio de gripe. E dos vizinhos, um recadinho no WhatsApp do condomínio oferecendo-se para levar o lixo na rua e poupar os moradores que se encontram no grupo de risco da doença.

Daqueles vizinhos que nem tem tanta intimidade comigo, mas que são parceiros de conversas no cachorródromo do Tesourinha, onde levo o cusco Quincas Fernando Martins para passear, quando é meu período da guarda compartilhada e não estou de isolamento, ações renovadoras da fé no ser humano. A tutora de um buldogue francês encomendou de um laboratório uma quantidade de álcool em gel e se dispôs a distribuir no grupo do whats dos cachorreiros para quem não estivesse encontrando. Ao saber da minha necessidade de confinamento, ofereceu-se para me entregar no meu edifício, sem ultrapassar as grades que me separam da rua e dos seus perigos de contágio.

Uma outra amiga do peito, da minha rede de poetas, que também se encontra de "quarentena", por ter mais de 60 anos e portadora de doença crônica, soube da minha paixão gastronômica por feijão, daquele feito em casa, temperado com amor e segredos culinários. E, na impossibilidade de alcançar um pote da iguaria que ela cozinhara no meio da semana passada (pelo seu isolamento) e que quase senti o aroma pela descrição do prato - embora em bairros distantes - ela se comprometeu a cozinhar novamente o feijão delicioso quando tudo isto passar e fazer chegar até a minha casa. E eu, desde já, estou salivando.

Ou as companheiras dos movimentos feministas se dispondo a mandar entregar alguns livros para passar o tempo. Ou o amigo de todas as horas, agora vizinho aqui na Cidade Baixa, que volta e meia, faz a pergunta sobre a minha saúde no whats e, feliz ao saber que estou controlando a situação, encerra sempre o assunto dizendo: "cuide-se bem Marcita". Ou da minha dupla de amigos dos tempos da comunicação da Prefeitura, a minha mana emprestada e meu amigo cachorreiro, que já combinou um encontro para colocar todas as fofocas em dia assim que esta pandemia do coronavírus for apenas uma lembrança em nossas vidas.

Claro que teremos, também, alguns ensinamentos que vamos querer esquecer, riscar das memórias, porque mostram que algumas pessoas não se preocupam com o coletivo e vivem para cuidar do seu umbigo e de seus mundinhos fúteis. Como os (as) despreocupados (as) que ainda ocupam os parques da cidade para manter o corpo em forma, ou para expor seus filhos aos perigos ao usar os brinquedos das praças. Como os (as) idosos (as) que vagam pelas ruas sem nenhuma proteção, alheios ao que está acontecendo, como se a letalidade do Coronavírus nesta faixa etária não fosse maior. E os casais apaixonados trocando carícias e esquecendo que o amor é bem mais lindo nos seres vivos. 

E não vou aqui hoje, pelo menos, falar no desastre que ocupa a cadeira de presidente do País. E, mais uma vez, reitero, não é meu presidente, nunca será. Meu voto foi num professor que jamais iria fazer um pronunciamento tão sem noção, tão fora de contexto, tão desrespeitoso com os brasileiros que estão morrendo, como o Jair Bolsonaro fez, na terça-feira, às 20h em cadeia de rádio e televisão.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

Comentários