Estatuto dos Índios

(Mais ou menos à maneira do Estatuto dos Homens, do poeta Thiago de Mello.) Artigo primeiro.A partir de hoje, fica decidido que os índios …





(Mais ou menos à maneira do Estatuto dos Homens,
do poeta Thiago de Mello.)


Artigo primeiro.
A partir de hoje, fica decidido que os índios são gente como nós, apesar da comparação depreciativa para eles.


 


Parágrafo Único.
Devem, apenas para justificar o presente artigo, ser tratados como tal.


 


Artigo segundo.
Novamente os índios andarão nus pela vida e pela selva sem andar com uma mão na frente e outra atrás, nem por vergonha nem por vergonha por falta de recursos. Poderão aparecer em revistas coloridas mas despidos a caráter.


 


Artigo terceiro.
O índio, de agora em diante, voltará a caçar e a pescar nos matos, rios e lagos que lhes pertencem, sem ser obrigado a tirar licença ou pagar pela comida. Se lhe der na veneta, poderá até pescar fora dos rios e lagos, o que não poderá ser considerado estranho.


 


Artigo quarto.
Os índios tornarão a caminhar livremente pelas trilhas deste imenso Brasil a qualquer dia e hora do seu próprio calendário. Para isso, terão sempre sinal verde: as matas, que serão preservadas especialmente com esse objetivo.


 


Artigo quinto.
Outra vez os índios dançarão e cantarão suas histórias, sem que haja a ameaça de uma TV transmitindo tudo. Os seus rituais e festas serão revividos e ao acontecer não deverão provocar nostalgia dos tempos passados, para não espantar a alegria deles.


 


Artigo sexto.
Cada tribo organizará seu dia a dia conforme a Lua. Ao homem branco será concedida a graça de compartilhar do mesmo luar, desde que a quilômetros de distância. As cerimônias, suas regras sociais, tudo será registrado em nome deles, que é pra ninguém copiar e ganhar dinheiro com o nourráu da mais completa felicidade.


 


Artigo sétimo.
Haverá enfeites e mais enfeites. Da cabeça aos pés, ida e volta, o índio redescobrirá o prazer  de colorir sua personalidade. E isso, de forma alguma, venderá fascículos comerciais ou postais. As tintas, os índios mesmos se darão. As penas, eles trocarão com pássaros por ninhos oferecidos na parte mais aconchegante de suas ocas. Haverá enfeites, mas enfeitarão só os olhos com olhares indígenas.


 


Artigo oitavo.
A cachaça cairá de moda entre eles e só o cauim embebederá a imaginação e o corpo índio com as lembranças destiladas das suas origens. Claro que o cauim não deverá virar produto de consumo em nossos supermercados.


 


Artigo nono.
Pelos rios, a piroga seguirá e poluição branca jamais encostará nos seus cascos ou nos seus remos. Quando muito, fará marolas a um metro ou mais longe da embarcação, permitindo assim uma viagem limpa do índio para o interior de si mesmo. E por falar nisso, a volta às origens poderá ser como o índio quiser, com um detalhe: jamais poderá ser seguido por nenhum de nós, branquelos. De vez em quando, ao ver um índio feliz, nossa inveja poderá se aproximar dele por 5 minutos, no máximo.


 


Artigo dez.
Por este estatuto, fica assegurada, desde já, acura dos males que contagiaram os índios, só que de um modo especial: sem remédio de branco, que é pra não piorar a situação deles. Se curarão e pronto. Sua pele rija, seu cabelo liso e negro, seus dentes fortes, seu brilho no olhar, seu andar ereto, tudo isso tomará conta do seu organismo, assim no mais. Eles se lembram como era.


 


Artigo onze.
Também acaba agora a aculturação, e que Tupã a dê em dobro ao homem branco.


 


Artigo doze.
Aos índios será devolvida a paz que lhes roubamos e não a pegaremos de volta se, por causa da sua índole, ou da desconfiança que herdaram da gente, eles relutarem em apanhá-la.


 


Artigo treze.
E para que este estatuto prevaleça, fica descriado o Dia do Índio, uma ironia em forma de data. Aliás, para maior garantia dos direitos aqui determinados, fica estabelecido que eu, você, todos nós, civilizados ou não, não existimos mais. E cumpra-se. Antes que seja tarde demais e o Juruna precise de gravador maior, coitado.


(Texto originalmente publicado no livro Punidos Venceremos, em 1980. Republicado agora só pra enfatizar a inutilidade da Funai.)

Autor
Fraga. Jornalista e humorista, editor de antologias e curador de exposições de humor. Colunista do jornal Extra Classe.

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