Estou me guardando para quando o carnaval chegar

Por Márcia Martins

Lá pelo dia 16 de março, quando retornei de uma consulta médica de rotina com a orientação do especialista que me acompanha desde 2016 para permanecer em total isolamento, tomei as devidas providências para suportar o tempo do tal confinamento. O cusco Quincas Fernando, pela minha impossibilidade de sair com ele para as caminhadas que a energia canina exige, foi transferido para a casa da minha filha e sua namorada. Arrumei num canto os livros que precisava ler. Separei DVDs. Selecionei séries para ver nos canais pagos de filmes. E fiz um estoque de alimentos, bebidas, guloseimas e álcool gel para uns 30 dias.

A Páscoa seria comemorada em 12 de abril e arrisquei que iria passar o feriado com meu irmão, cunhada e afilhado em Butiá, como faço tradicionalmente há muitos anos. Mas, às vésperas da quinta-feira santa, 9 de abril, percebi, pelo acirramento do Coronavírus no Brasil, que meu plano seria abortado. Explico que não sou católica e a vontade de passar a Páscoa naquela cidade é para curtir parte da família e saborear as delícias que mano e cunhada cozinham. Não foi possível. A filha eu já não via - exceto quando deixava as compras que fazia no super para mim aqui na grade do apartamento.

Conformada, refiz o planejamento do isolamento total para mais dias. Quem sabe até o Dia das Mães, 10 de maio. Mais livros separados, DVDs, novas séries indicadas para assistir e um estoque mais substancioso de alimentos, bebidas e guloseimas. O álcool gel não precisou ser reposto. Com saídas esporádica só para tomar vacina, um procedimento de saúde e levar o lixo, o álcool gel nem é tão usado. Mas a movimentação do Dia das Mães começou a ganhar fôlego e eu tive consciência de que passaria a data sozinha em casa. Ao contrário da Páscoa, esta data eu gosto de ficar ao lado da filha e ser paparicada.

Entre estes dois planos cancelados, convenci a filha deixar o cachorro Quincas uns dias comigo para que eu não chorasse tanto de saudade. Depois de dois dias comigo, pedi que ela buscasse o cusco porque ele estava muito inquieto de não poder sair para a rua (desde filhote, ele faz as necessidades no canto do banheiro dele). Nas duas datas - Páscoa e Dia das Mães - a amada filha Gabriela mandou entregar uns mimos para me acarinhar e eu não entrar em depressão total.

E a geminiana doente que ama fazer aniversário e festa começou a pensar em uma pequena comemoração no dia 9 de junho, quando mudava de idade. Diante de tantas notícias do agravamento dos números de doentes e mortes pela Covid19 no Brasil, no Estado e em Porto Alegre, entendi que passaria sozinha o aniversário, sem família, sem amigos, sem o auê que adoro. Até que não foi tão horrível. Mas decidi que não vou contar a troca da idade. E que os 60 anos que eu deveria ter feito em 2020, não fosse este ano não estar sendo vivido, só serão contabilizados no próximo ano.

Mais uma vez, repeti o planejamento para itens essenciais no distanciamento por mais tempo. Títulos de livros não degustados, DVDs, mais séries catadas nos canais pagos de filmes, comidas e bebidas e, agora, litros de vinhos, porque sem a cachaça ninguém segura esse rojão. Eis que voltei para a sessão do meu tratamento de saúde e animada perguntei pro mesmo médico do dia 16 de março do início da coluna se era possível uma pequena folga na "carentena". E ele afirmou: umas duas vezes por semana, quanto tiver tempo bom, pode uma caminhada de três quadras, no máximo, mas evitando chegar perto de gente.

Depois do balde de água fria do médico e do alerta da Sociedade de Infectologia do RS de que o lockdown é a única forma capaz de se tentar evitar o colapso do sistema de saúde no Estado - e sem sinalização do governador de adotar e da população seguir - , optei em não mais fazer planos. Ao comemorar, na segunda, dia 13, meu quarto mesversário de confinamento, isolamento e distanciamento, nem quero pensar no Natal e no Ano Novo. Decidi que estou me guardando para quando o carnaval chegar.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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