IN FORMA

Por Marino Boeira

Leia antes de ir ao cinema

Esse ano de 2023 assinala o centenário do manifesto escrito pelo intelectual italiano Ricciotto Canudo propondo que o cinema fosse incluído na lista das artes de Hegel: Pintura, Escultura, Música, Literatura, Dança e Arquitetura.

Depois disso, virou lugar comum chamar o Cinema de "a Sétima Arte". O interessante é que o Teatro não é considerado arte, porque se constitui a partir das outras artes, principalmente a Literatura, a Música e a Dança, mas o mesmo acontece com o Cinema.

Enquanto o Teatro tem uma história milenar, o Cinema nasceu com os irmãos Lumière em 1895. E mais do que isso: o Cinema seria o uso da fotografia em movimento de um texto literário teatralizado. O primeiro registro fotográfico reconhecido remonta ao ano de 1826 e é atribuído ao francês Joseph Nicéphore Niépce.

Deixando de lado essas questões técnicas e mesmo reconhecendo que o Cinema, principalmente depois que se tornou sonoro, se apoia em outras artes, o que justificaria a sua condição de arte?

O script ou roteiro é inicialmente um texto literário e pode ser lido como um livro. Ele se transforma em filme na medida em que seus cenários, descritos de forma literária, são mostrados através de uma fotografia animada. Nesses cenários "vivos", atores e atrizes interpretam seus textos, como no Teatro, e realizam movimentos estilizados que lembram passos de Dança, enquanto uma determinada Música cria um clima diferenciado para a cena.

Como em alguns filmes, os cenários são construídos especialmente para eles, não podemos esquecer a Arquitetura como um componente importante do filme. Sergei Eisenstein, o grande diretor soviético de 'Encouraçado Potemkim' (1925), 'Outubro' (1927) e 'Alexandre Nevsky' (1938), assim definia o cinema: "O cinema é uma síntese, uma nova e maravilhosa variedade da arte, fundido tudo em si própria, identificando no seu seio a pintura e o drama, a música e a escultura, a arquitetura e a dança, a paisagem e homem, a imagem e o verbo".

Quando, então, o Cinema se transforma em arte única e não apenas numa soma de outras artes?

Quando existe alguém que através do olho da câmera, escolhe os ângulos da filmagem, dirige os atores e no final remonta todas essas imagens usando um tempo que não precisa necessariamente ser o tempo real da história que está sendo contada.  

Esse produto final, chamado Cinema, não é mais Literatura, Música, Dança, Arquitetura ou Pintura. É uma nova arte chamada Cinema. Dito isso, caímos em outro determinismo: todo filme por ser o produto final de um conjunto de elementos organizados sob o comando de um diretor, pode ser considerado uma obra de arte? A resposta é não. No Clube do Cinema de Porto Alegre, PF Gastal, crítico de cinema da Caldas Júnior e presidente do clube, costumava dividir os diretores em três grupos: o menor e mais seleto era formado pelos diretores criativos, o segundo pelos bons artesãos e o terceiro, o mais numeroso de todos por diretores totalmente comerciais.  

Os primeiros mereceriam nossa atenção e respeito; os segundo serviriam apenas como passatempo e os terceiros deveriam ser evitados a qualquer custo. Assim sendo, em princípio, só diretores como Charles Chaplin, Sergei Eisenstein, Luchino Visconti, John Ford, Alain Resnais, Stanley Kubrick, Roman Polanski, Ingmar Bergman, Federico Fellini e alguns poucos outros seriam os criadores de obras de arte.

Finalmente, o cinema é a arte mais popular de todas e a mais democrática. Por apenas alguns reais você tem acesso tanto a uma obra de arte do Ingmar Bergman como 'Fanny e Alexander', quanto uma bobagem sem tamanho como 'Velozes e Furiosos 10', do desconhecido Louis Letenier.

Compare esse valor de ingresso numa sala de cinema com o que é cobrado num espetáculo teatral, de dança, até mesmo do valor de um livro. E as  telenovelas, que usam também todos os componentes de um filme para o cinema e chegam gratuitamente na casa das pessoas, poderão ser consideradas no futuro, a oitava arte?

Enquanto as respostas não chegam, quem sabe vamos ao cinema ou, mesmo sem sair de casa, ver um filme num streaming qualquer?

Autor
Formado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), foi jornalista nos veículos Última Hora, Revista Manchete, Jornal do Comércio e TV Piratini. Como publicitário, atuou nas agências Standard, Marca, Módulo, MPM e Símbolo. Acumula ainda experiência como professor universitário na área de Comunicação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e na Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos). É autor dos livros 'Raul', 'Crime na Madrugada', 'De Quatro', 'Tudo que Você NÃO Deve Fazer para Ganhar Dinheiro na Propaganda', 'Tudo Começou em 1964', 'Brizola e Eu' e 'Aconteceu em...', que traz crônicas de viagens, publicadas originalmente em Coletiva.net. E-mail para contato: [email protected]

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