Janelas fechadas para o mundo

Perdoe-me, caro poeta Mário Quintana, o empréstimo e esta coluna improvisada. Mas, nos últimos dias, vi tanta esquina esquisita demais, pouca nuança de paredes …

Perdoe-me, caro poeta Mário Quintana, o empréstimo e esta coluna improvisada. Mas, nos últimos dias, vi tanta esquina esquisita demais, pouca nuança de paredes e muita moça que um dia foi bonita (guria de menos de 15 anos) cravejada de cicatrizes impostas pela vida desigual nas ruas de Porto Alegre, por onde tive que passar. Nem queria mais observar a anatomia do corpo da capital gaúcha! Tive medo que o mapa da cidade estivesse muito semelhante à anatomia do meu corpo e recuei. E, sentindo uma dor esquisita e pungente, decidi enclausurar-me em casa e, simplesmente, fechar as janelas do mundo.


Sem problemas para quem está "encostada" (jurei que jamais diria isso) no INSS de licença-saúde. Fica fácil não abrir as portas da desesperança, cerrar as mãos para a solidariedade e cegar os olhos para a pobreza. Lavar as mãos. Alguém já fez isso, segundo a Bíblia, e muitos ainda o fazem sem carregar nenhum peso na consciência: Oba vou entrar neste bloco, pensei com meus botões. A desculpa que faltava chegou com a estadia forçada de minha afilhada aqui em casa, com febre alta e dores no corpo e uma mochila de quem ficaria alguns dias, uma vez que sua mãe viajara a trabalho.


É bem mais cômodo adotar a passividade diante das injustiças sociais que, diga-se de passagem, não é privilégio de Porto Alegre, embora a cidade sirva de atrativo ao ostentar, por anos consecutivos, o título de metrópole brasileira com melhor qualidade de vida. Não dói fingir que não se ouve o apelo repetido do menino que vai de pedestre em pedestre pedindo: "Ei, tio, me dá um trocadinho aí. Ah, tudo bem. Pode ser um vale-transporte". Nada desconfortante apressar o passo e evitar aquele cruzamento onde uma família rica de membros e sem nada material poderia me interpelar e solicitar ajuda para comprar um pouco de alguma coisa.


Como já profetizava o poeta português Luiz Vaz de Camões, no soneto 11, "é ferida que dói e não se sente, uma dor que desatina sem doer". O cruzar a calçada, o passo acelerado, o trocadinho negado, a sobra da comida que não se compartilha, a mão que não se estende e a caridade que não se executa. Claro que o ato é menos penoso. Não dói no bolso, não aumenta o carrinho no supermercado, não tira roupas pouco usadas do nosso armário e evita-se qualquer contato com as camadas menos favorecidas da população. Sabe-se lá! Vai que eles podem nos passar algum vírus! É sempre bom prevenir! Sim, alguns pensam assim!


Ainda bem que há "malas que vem de trem" (hehehe). Na noite de terça-feira, era obrigada a comparecer ao colégio da minha filha Gabriela Martins Trezzi para receber a avaliação do primeiro trimestre, precedida de uma palestra sobre "milagrosamente" não sei o quê, porque, pela primeira vez, em oito anos de escola, deletei de minha agenda (viu, falei que não era super mãe). Um trajeto extremamente curto que não leva mais do que três minutos. Como era um pulo lá e outro aqui, saí de casa sem absolutamente nada nas mãos. Sem identidade, dinheiro, celular, chiclete, caneta, bloco. Sem lenço e sem documento.


Ao sair do colégio, completamente envaidecida com as notas da avaliação da minha pequena, levava nas mãos apenas o papel fornecido pelo colégio. Mais nada. Feliz com o desempenho de Gabriela. Com pressa para retornar a casa onde filha e afilhada me esperavam. Um cão shih tzu que se apaixonou por mim e me aguarda sempre ansioso perto da porta. Uma panela de canja para saciar a fome. Banho tomado. Perfume de grife. Echarpe protegendo o frio no pescoço. Como se não fizessem parte do meu mundo e de ninguém os meninos atirados na esquina alimentando-se do cheiro da carroça de cachorro-quente.


De mãos abanando. Literalmente. Foi como respondi que não tinha nada para compartilhar com os meninos. E segui para o meu conforto como fazem milhares e milhares de pessoas todos os dias, lavando as mãos para o crescimento da desigualdade, da injustiça, da pobreza e da falta de solidariedade que é nojenta. Não! Eu me excluo desta parcela que não tá nem aí! Eu me importo! Eu tenho pena! Eu tenho compaixão! Sim, lamento, queridos internautas, mas vocês têm uma grande parcela de responsabilidade! Não joguem mais a indignação para baixo do tapete. Às vezes, se ganha em se perder, disse Camões.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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