Jeremias, o Bom

Por Marino Boeira

Levei um susto quando ele me ligou:

- Aqui é o Jeremias.

O nome dele, na verdade, é Arnaldo, mas a gente o apelidou de Jeremias, o Bom, aquele personagem do Ziraldo que não fazia mal a ninguém, que não via maldade em nada e que só queria fazer o bem.

Primeiro na escola primária, depois no time da zona e mais tarde quando nos tornamos adolescentes, Jeremias, o Bom, era o protegido da turma. Nas discussões do grupo a palavra dele era ouvida como a voz da razão.

Com a passagem do tempo, o grupo foi ficando cada vez menor e lá pelos 20 anos, éramos eu, o Jeremias - ninguém mais se referia a ele como Arnaldo - o Alfredão, o Cururu e o Alberto. 

Estávamos sempre juntos, menos quando o grupo saia para o bordel da Dorinha. O Jeremias sempre encontrava uma desculpa para não ir junto.

- Vocês não acham que o Jeremias é meio veado?, perguntou o Cururu, famoso pela sua grossura.

- Acho que ele é virgem, respondeu o Alberto.

Mais tarde, três integrantes do grupo casaram: o Alfredão com a Ritinha, o Cururu com a Magda e o Alberto, com a Marília. Só o Jeremias e eu continuamos solteiros. Mesmo assim, vivíamos nos encontrando.

Agora as reuniões eram na casa do Alfredão - churrascos todos os domingos - os três casais, mais o Jeremias e eu.

Numa quarta-feira, o Alfredão me ligou dizendo que haveria uma reunião extra, à noite, na sua casa, mas não era para avisar o Jeremias. Pensei que as pessoas estariam preparando uma surpresa pra ele. Quem sabe era seu aniversário e eu não sabia. 

Mas quando cheguei a surpresa foi minha. O Alfredão anunciou que soube de fonte segura que o Jeremias pretendia casar com a Vera.

- Com quem?

- Com a Verinha Toda Puta, gritou o Cururu.

A Verinha era certamente a moça mais falada na zona. Diziam que ela não era mais virgem e que tinha dormido até com um professor da escola.

- Ela vai encher o Jeremias de guampas, disse o Alfredão.

- Aqui na minha casa essa vagabunda não entra, falou a Ritinha.

A Magda ajudou na crítica:

- Dizem que ela tem em caso com um sargento da Brigada e que o apelido dela é Vera Maçaneta.

- Por quê?

- Porque todo mundo põe a mão.

Durante mais de uma hora se falou mal da Vera, até que o Alfredão propôs o que deveríamos fazer:

- Vamos nos reunir com o Jeremias, explicar a ele que estamos falando como amigos e que ele não deve nem pensar em casar com a Vera.

Foi o que fizemos na noite seguinte, no bar do Afonso. O Jeremias ouviu tudo que tínhamos para dizer, permanecendo sempre tranquilo e silencioso, para responder apenas no final:

- Obrigado pelo interesse de vocês no meu futuro, obrigado pelas informações, mas tenho que ir embora.

Saiu e nunca mais nos encontramos, até que me ligou na noite passada. 

Disse que achou meu telefone pelo Facebook e perguntou se eu sabia da turma. 

Eu sabia que o casamento do Alfredão com a Ritinha tinha terminado num grande escândalo, quando ele descobriu que ela o estava atraindo com um sargento da Brigada. O tal sargento depois ameaçou dar um tiro no Alfredão se ele não ficasse quieto. Parece que ele aguentou a situação durante algum tempo, mas depois foi morar com a mãe. A Magda abandonou o Cururu e foi viver com um gerente do Zaffari. Do Alberto e da Marília, eu não tinha notícias.

- E tu, Arnaldo?

- Jeremias, por favor. Do que o Alfredão falou naquela noite, metade eu já sabia, porque a Vera já me contara e a outra metade era mentira. Casamos e, na medida do possível, continuamos sendo felizes, agora com filhos e netos.

- E tu?

- E, eu Jeremias? 

Boa pergunta, vou pensar e a qualquer hora te respondo.

Autor
Formado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), foi jornalista nos veículos Última Hora, Revista Manchete, Jornal do Comércio e TV Piratini. Como publicitário, atuou nas agências Standard, Marca, Módulo, MPM e Símbolo. Acumula ainda experiência como professor universitário na área de Comunicação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e na Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos). É autor dos livros 'Raul', 'Crime na Madrugada', 'De Quatro', 'Tudo que Você NÃO Deve Fazer para Ganhar Dinheiro na Propaganda', 'Tudo Começou em 1964', 'Brizola e Eu' e 'Aconteceu em...', que traz crônicas de viagens, publicadas originalmente em Coletiva.net. E-mail para contato: [email protected]

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