Mel e nozes

Por José Antônio Moraes de Oliveira

 

"Sempre que penso em doces,

estou de volta à infância."

Orson Welles.

  

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Naqueles tempos, meu território era limitado por duas esquinas. De um lado, a rua Ramiro Barcelos, dos casarões e das casas senhoriais. Do outro, a Felipe Camarão, com seu casario de porta-e-janela. Por lá também ficava o mercadinho de Dona Bertha, o armazém do seu Joaquim e alguns terrenos baldios cheios de mato. Na nossa rua, seis ou sete sobradinhos de cada lado, além da casa dos Hartmann e do casarão amarelo da esquina. As calçadas eram cobertas de ardósia rosa e o meio da rua, com paralelepípedos. O asfalto ainda não havia chegado a Porto Alegre.

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Naquele pequeno universo, gravitavam personagens dos quais me lembro bem. Na casa ao lado, no número 306, morava um casal de judeus, do qual pouco se sabia. Ele se chamava Moshe, um homem discreto, que tirava o chapéu quando passava pelos vizinhos. Diziam que tinha uma loja de sedas e tecidos do outro lado da cidade. Ela era Dona Sara, sempre de vestido floreado miúdo. Eu gostava dela, porque nos trazia bandejas de doces ídiches no dia do ano novo judeu. 

O número 303 era um dos mais agitados, onde morava a viúva Clarice e os filhos Daniel e Elias, que tinham nomes de profetas, mas que de santos não tinham nada. Os dois viviam subindo nas árvores da rua e por mais de uma vez me chamaram para espiar a empregada dos Hartmann lavando roupa com a saia arregaçada até o meio das coxas.

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Também circulavam por lá umas figuras ocasionais, que subiam ou desciam a ladeira em certos dias da semana. No dia-a-dia, era o leiteiro Arnaldo e sua carrocinha puxada a burro. Aparecia cedo e sua chegada era marcada pelo tilintar das garrafas de leite que depositava à porta das casas. A mãe dizia que burro de leiteiro era um bicho inteligente, pois parava na casa dos clientes, sem errar uma só vez. 

Nas manhãs de sexta-feiras, quem descia a rua era o homem-do-mocotó, um mulato alto, trajado de branco, do gorro aos tamancos. Alguns vizinhos eram seus clientes fiéis, que juravam que aquele era o melhor mocotó da cidade. O mercadinho de Dona Bertha era onde o bairro se abastecia de legumes, verduras e de frutas frescas. Mas meu interesse era bem outro - os doces feitos pelo turco Leon; uma vez por semana lá vinha ele subindo a rua em seu caminhãozinho, fazendo barulho e muita fumaça.

Carregava bandejas de doces de amendoim, coco e abóbora. E exibindo faceiro sua especialidade mais apreciada - os folhados gregos que chamava de baclava, feitos com nozes moídas, pistache e cobertos de mel. Dizia que era uma receita antiga, guardada na memória e que não botava no papel de jeito algum, com medo que roubassem seu segredo.

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Por mais de uma vez, eu separava parte da mesada que ganhava do pai para trocar o gibi da semana pela baclava do turco Leon.  A um canto do mercadinho, meio lambuzado de mel e nozes, eu ficava de olho comprido nas idas e vindas de Dona Bertha e seu avental decotado.

Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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