Museu Nacional do Descaso

Por Fraga

 

Se pensasse, o que teria pensado o meteorito de Bendegó em meio ao fogaréu do Museu Nacional? Provavelmente que estava, outra vez, ardendo na reentrada da atmosfera brasileira, que voltara a 1784, quando caiu na Bahia. O Bendegó, acostumado a fricções siderais inimagináveis, foi um dos poucos objetos que resistiu a esse incinerador em que está metida a cultura nacional. Graças ao ferro e níquel de que é feito. Quase todo o resto do acervo torrou feito pluma, papel, tecido, madeira.

Insuportável pensar na perda imensurável do Museu Nacional: 200 anos de paciente acúmulo de tesouros científicos, artísticos, históricos. Nunca mais. Se incêndio acidental ou criminoso, a investigação deve apontar. Mas já se intui que, entre os escombros, se acharão provas do secular descaso oficial. Esturricado porém reconhecível pela falta de zelo com o passado. Como se sabe, descaso cultural é o estopim de pavio curto escondido em trocentas instituições culturais em instalações precárias por esse desgovernado Brasil.

Um museu de história natural é um almanaque ao vivo. Quer ilustração melhor que o objeto, o bicho, a planta, a pedra, tudo ali ao alcance da experiência pelo contato? Um museu de história nacional combina relíquias que só a natureza sabe fazer com relíquias que só a capacidade do homo sapiens inventa. O Museu Nacional era um resumão da fervihante natureza animal, vegetal, mineral espalhada por 8 milhões de km2, seja lá quanto for isso.

Num museu de história natural, imbatível é o patrimônio nacional: há muitas espécies da flora e da fauna que só aqui no Brasilzão tem. E animais e árvores que às vezes somente em algumas regiões. A tal diversidade, no Brasil, parece muito mais diversa. E os países, quando o mundo era mais civilizado, souberam permutar partes dessas preciosidades e raridades naturais, e também tesouros arqueológicos. Assim os museus formaram amostras grátis do planeta pra todos povos curtirem. Sobretudo pra garotada e pra criança que resiste no miolo do adulto.

Por isso ir ao Museu Nacional, pra mim, era programa de índio: lá estava reunida a estupenda etnologia indígena que o branco retirou da Pindorama. Da arte plumária à cestaria, da cerâmica aos adornos, uma riqueza visual de assombrar pela criatividade. Mais bonito que tudo aquilo, só os raros cocares que os holandeses levaram daqui, conforme se viu no ´empréstimo´ para a mostra Brasil 500 Anos. Sempre que eu ia à Quinta da Boa Vista, passeava antes pela ala indígena.

Foram 12 anos de Rio, pelo menos uma dúzia de visitações. Com os filhos, com namoradas, com amigos. As atrações da Quinta da Boa Vista iam além do Museu Nacional: o parque verdão e, melhor, os shows na concha acústica junto ao lago. O maior dele, inesquecível, do George Martin e seu projeto do CD das suas favoritas dos Beatles. O dia ameaçava chover e, quando vieram os primeiros pingos, o 5º beatle mandou recolher os instrumentos de madeira e convidou: Quem quer tomar um banho de chuva comigo? Ninguém arredou pé. Uma tarde gravada nos tímpanos para sempre, e as Meninas Cantoras de Petrópolis ainda ressoam na memória com Ticket to Ride. (Tenho a duradoura ilusão de, em meio aos aplausos na canção, distinguir minhas mãos hehe)

Menos significativas foram as 6 ou 7 tartaruguinhas que comprava dos camelôs nas calçadas da zona sul. Aguardava crescerem numa bandeja em casa e então levava pra Quinta da Boa Vista e largava lá no lago, com dezenas ou centenas de outras. Ainda estão lá. Devem ter se assustado com as labaredas de domingo.

A Quinta e o Museu Nacional é um aprazível lugar, lotado nos fins de semana. Mesmo assim, falam que em 2017 o Museu Nacional teve metade dos visitantes do ano anterior. Por outro lado, a população, e os turistas, fazem filas intermináveis pra entrar no Museu do Amanhã. Que é belíssimo, arrojada arquitetura, porém oco por dentro. Suas atrações ou são virtuais ou eletrônicas ou tecnológicas. Você sai de lá como entrou. No Museu Nacional você entrava e depois emergia de 1800, quando muito de 1900. O bom é que ao nosso redor convivam museus de todos os tipos. Mas um museu que retrata seu país é insubstituível. Sobre isso, a Eliane Brum, uma balizadora dos rumos brasileiros, escreveu certeira.

Que resta fazer diante desse estrago doloroso? Protestar e xingar as autoridades. Da minha parte, foi o que rolou no Twitter:

Extintores têm esse nome porque - quando inexistentes ou não utilizados ou mal empregados ou sem validade - ajudam a extinguir o que deveriam proteger.

Incêndio de grandes proporções = proporcional às falhas dos sistemas de proteção contra fogo.

No carnaval das verbas públicas que impera no Brasil, para a cultura sempre coube a quarta-feira de cinzas.

Todos os governantes brasileiros são desinteressados, negligentes, relapsos e incompetentes com a cultura. De um jeito ou outro, todos incendiários.

Autor
Fraga. Jornalista e humorista, editor de antologias e curador de exposições de humor. Colunista do jornal Extra Classe.

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