Na fronteira entre herói e bandido

Por Roger Lerina

A política externa norte-americana e as ações de bastidores do governo dos Estados Unidos na defesa de seus interesses mundo afora sempre estiveram na mira de Hollywood. O cinema e a televisão assiduamente ocupam as telas mostrando maquinações da CIA para derrubar regimes malvistos, guerras travadas nos desertos do Oriente Médio e nas selvas asiáticas, ajudas clandestinas a guerrilhas no continente americano e na África, combate ao narcotráfico internacional. Filmes recentes como "Syriana - A Indústria do Petróleo" (2005), "Guerra ao Terror" (2008) e "A Hora Mais Escura" (2012) e seriados do tipo "24 Horas", "Homeland" e "Narcos" buscam relativizar a tradicional imagem dos gringos como polícia do mundo - mas a verdade é que raramente uma produção "made in USA" condena de forma explícita e absoluta a postura intervencionista do país em todos os cantos do planeta.

Nesta semana, entrou em cartaz nos cinemas brasileiros mais um título que segue a linha do "morde e assopra" para falar de norte-americanos lidando com problemas no seu quintal e no do vizinho: "Sicário: Dia do Soldado" (2018). O longa é uma continuação do interessante "Sicário: Terra de Ninguém" (2015), de Denis Villeneuve. A história do novo thriller policial leva novamente a assinatura do roteirista Taylor Sheridan - a direção, porém, mudou: o lugar do franco-canadense Villeneuve foi assumido pelo italiano Stefano Sollima, especialista em enredos de máfia, realizador de filmes como "Suburra" (2015) e da série de sucesso "Gomorra". Dois dos personagens centrais do filme anterior protagonizam "Dia do Soldado": o agente federal Matt Graver (Josh Brolin), especializado em fazer trabalho sujo, e o dublê de advogado e justiceiro mexicano Alejandro Gillick (Benicio Del Toro). Ficou de fora do atual "Sicário" a idealista agente do FBI vivida por Emily Blunt, que deparava em "Terra de Ninguém" com a ausência de escrúpulos no combate ao tráfico na fronteira entre México e Estados Unidos.

Em "Sicário: Dia do Soldado", a descoberta de que extremistas islâmicos estariam se infiltrando em território norte-americano como imigrantes ilegais e o choque causado por um sangrento atentado terrorista em Kansas City colocam o governo em alerta máximo - indicando ainda uma provável conexão entre jihadistas muçulmanos, piratas somalis e traficantes mexicanos. O secretário de Defesa (Matthew Modine) convoca chefes militares e de inteligência a fim de organizar uma retaliação aos cartéis mexicanos que controlam o tráfico de drogas e de pessoas pela fronteira. Matt sugere então sequestrar no México a adolescente Isabel Reyes (Isabela Moner), herdeira do líder de um poderoso cartel - o mesmo que assassinou no passado a mulher e a filha de Alejandro. A ideia é fazer com que a ação pareça ser obra de uma gangue rival e, assim, desencadear uma sangrenta guerra entre a bandidagem do outro lado do muro. Matt convoca o lobo solitário Alejandro e juntos, sob às ordens de uma chefona da CIA (Catherine Keener), coordenam o rapto da jovem, que deverá ser levada aos Estados Unidos e depois devolvida ao pai. Mas o plano, claro, não vai sair exatamente como o esperado, colocando em risco a operação e as vidas de todos os envolvidos.

Paralelamente, a trama acompanha um garoto de origem mexicana que vive com a família no lado norte-americano da divisa e que é aliciado pelo primo a integrar uma quadrilha de coiotes - como são chamados aqueles que ajudam pessoas a entrarem ilegalmente nos Estados Unidos. O caminho de Elijah Rodriguez vai cruzar com o da dupla de agentes, em um encontro que será decisivo para o desfecho do filme.

"Sicário: Dia do Soldado" é quase todo ambientado na fronteira do México com o Texas - Estado norte-americano que esteve nas manchetes nas últimas semanas por ter sido palco do drama das separações, determinadas pelo presidente Trump, de crianças e pais que entraram clandestinamente no país. Essa tensão social, humanitária e política perpassa o roteiro como uma constante e latente ameaça, articulando-se com a característica ambiguidade das zonas cinzentas fronteiriças a fim de adensar o clima e matizar o caráter dos personagens - mocinhos e vilões parecem alternar os papéis entre si no desenrolar da ação. Contribui ainda para esticar a corda dramática em "Sicário: Dia do Soldado" a trilha sonora e o desenho de som crispados, que potencializam as sequências mais angustiantes.

Josh Brolin e, especialmente, Benicio Del Toro estão ótimos em cena. Pena que, na queda de braço entre reiteração e desconstrução do mito do herói altruísta e imbatível, "Sicário: Dia do Soldado" ceda lá pelas tantas à tentação de realçar os bons sentimentos da dupla protagonista e também torná-los excessivamente onipotentes. "Sicário: Dia do Soldado" acaba se saindo muito bem como entretenimento, mas infelizmente abre mão de aprofundar os elementos dramáticos e críticos do enredo.

Autor
Jornalista e crítico de cinema, integrante da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Editou de 1999 a 2017 a coluna Contracapa (artes, cultura e entretenimento), publicada no Segundo Caderno do jornal Zero Hora. Neste período, também atuou como repórter cultural do caderno de variedades de ZH. Apresentou o Programa do Roger na TVCOM entre 2011 e 2015 e é é autor do livro "Mauro Soares - A Luz no Protagonista" (2015), volume da coleção Gaúchos em Cena, publicada pelo festival Porto Alegre Em Cena. Foi corroteirista da minissérie "Tá no Sangue - Os Fagundes", veiculada pela RBS TV em 2016. Atua como repórter e crítico de cinema no Canal Brasil.

Comentários