Na mais completa solidão do confinamento necessário

Por Márcia Martins

Na terça-feira, 14 de abril, completei exatos 30 dias de confinamento social e hoje, nesta quarta-feira, 15 do mesmo mês, o calendário situado no canto direito inferior do notebook indica que estou há 31 dias sem ver o meu cachorro, meu neto canino, o vira-latas Quincas Fernando Martins. A filha, que sempre foi e continua sendo a minha razão de viver, vi de relance umas três vezes quando esteve aqui, entre as grades, para pegar a lista de compras do supermercado ou entregar remédios de uso contínuo que sou obrigada a tomar. Com os familiares (mano, cunhada, afilhado) que moram lá em Butiá, falo pelo telefone ou fazemos chamadas pelo whatsapp para acalmar a saudade.

Desde que meu médico disse, na segunda-feira, 16 de março, de que deveria em função da idade (quase 60) e ser portadora de uma doença crônica autoimune, fazer o distanciamento social, estou trancafiada entre quatro paredes. Fechada em um minúsculo apartamento. Sem andar até a esquina. Sem sentir o cheiro da rua. Desci aqui no prédio algumas vezes para receber alguma entrega, para levar o lixo, já que nem sempre os vizinhos estão disponíveis, ou para ir pegar algum medicamento urgente na farmácia da esquina. Para todos estes pequenos escapes, uma operação de guerra foi montada a fim de tomar todas as precauções necessárias em função do Covid-19.

 Um sapato fica na porta de entrada do apartamento para ser calçado no retorno e colocar o que estava nos meus pés quando eu andava na rua de molho. A máscara é cirurgicamente fixada no rosto e nem por um decreto eu mexo nela até voltar ao lar e lavá-la com os produtos indicados. Não pago nada com dinheiro para não tocar em algo que possa ter sido algum dia contaminado. Os óculos também vão para a higienização quando chego da rua. Carrego documentos dentro de uma sacolinha de pano e assim que volto de qualquer dos pequenos escapes, faço uma limpeza e a tal sacola, junto com a roupa que vesti, é depositada imediatamente na máquina de lavar.

 E, apesar de estar sempre acompanhada do álcool em gel (tem um recipiente dele em cada pequena peça do apartamento), entro direto no banho e posso ser chamada de a "Doida da Limpeza" ou a "Amante do Álcool em Gel". As compras do supermercado, sempre que a filha Gabriela deposita as sacolas na porta gradeada do meu apartamento, para não entrar e evitar qualquer risco de contágio (embora ela também esteja um pouco no tal isolamento), não escapam da limpeza com álcool líquido 70 e só após este processo elas assumem os seus espaços nos armários da cozinha. Enfim, uso e abuso das orientações dadas pelo Ministério da Saúde e OMS.

Meu maior contato com a rua, desde o início do isolamento, foi uma ida ao Posto de Saúde Modelo, na tentativa de receber a vacina da gripe. Tá bom, vocês têm toda a razão, eu me precipitei porque a primeira etapa era só para profissionais de saúde ou maiores de 60 anos. Jamais pensei que a atendente fosse imaginar que eu não tinha ainda os 60. Foi feio. Não deveria. Podem me xingar, com toda propriedade. Nos outros anos, sempre fiz vacina na primeira etapa e nunca exigiram apresentação de carteira de identidade. Mas, ao contrário de outras pessoas, eu, às vésperas dos 60, me pego até remoçando. Amanhã, quinta-feira, será a vez das doenças crônicas e vou me vacinar.

 Estou, portanto, na mais completa solidão do ser que é amado e que ama. Falo com a filha, a nora, com familiares, vejo fotos do cusco e ontem até fiquei emocionada, porque ao realizar uma chamada de vídeo ele ouviu a minha voz e reconheceu (vocês podem até pensar que é bobagem isto no caos desta pandemia). Mas é que um carinho, no meio deste cenário de isolamento, às vezes, cai bem. Leio bastante. Ouço música. Sou viciada em séries e filmes no Netflix e Amazon. Faxino a casa. Medito. Tenho umas três reuniões online por semana, vejo lives, estou sempre de olho no noticiário. Enfim, tento preencher a inércia, o vazio da convivência com uma série de atividades.

Sei que sou privilegiada por ter um lar para me confinar. Um armário para guardar as compras do supermercado. Uma cama quente para serenar meus pensamentos. Uma filha que procura me alcançar itens necessários para que eu não saia tanto na rua. E condições financeiras que me permitem ter uma série de opções de lazer e entretenimento dentro da minha casa. E os que não têm? E os que estão expostos dormindo nas esquinas, disputando espaços embaixo de marquises? E as crianças que não têm o que comer e nem onde dormir ou o que vestir?  E aqueles que têm muito mais, que não se preocupam com sorteio de contas a pagar, usufruem de coberturas em bairros nobres e não estão nem aí para a necessidade do isolamento? Mundo, mundo vasto e tão injusto mundo.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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