Nada será como antes

Por José Antonio Vieira da Cunha

31/10/2022 17:46 / Atualizado em 31/10/2022 17:45
Nada será como antes

Acabou a eleição e não tem golpe. Ato que seria, caso ocorresse, um verdadeiro Golpe Tabajara, como desde o início do ano um amigo caracterizou as sucessivas ameaças à democracia que fomos obrigados a ouvir.

Até este fim de semana a fornalha eleitoral brasileira seguia um ritmo tóxico, perigoso, mas o resultado conhecido na noite deste domingo indica que há esperança de que o horizonte se desanuvie. Há muito a se rever no país, e um dos maiores desafios está na tecnologia. Sim, nos avanços tecnológicos que transformam o ambiente social, político e econômico a cada mudança de lua, fazendo com que as normas que regem a sociedade se tornem cada vez mais e mais ultrapassadas. É o que acontece especialmente na área da comunicação, em que leis gestadas no século passado são confrontadas diariamente com uma realidade que foge totalmente ao alcance do espírito pretendido pelo legislador. Foi o que se viu de forma dramática nesta eleição, em que os meios de difusão de ideias e informações extrapolaram definitivamente a forma convencional, da velha e boa imprensa, para um novo mundo em que memes, notícias falsas, opiniões espirocadas tomassem conta do cenário da comunicação, distorcendo a realidade.

Os ministros do STF, nascidos em meados do século 20, tiveram de se superar para vencer velhos preconceitos e ideias arraigadas e enfrentar este cenário enlouquecido e nebuloso. Vamos concordar que alguns, e em especial Alexandre de Moraes, avançaram o sinal na tentativa de frear distorções, mas o saldo final deste 30 de outubro é que a democracia, aquela que não se negocia, sobreviveu. E boa parte deste cenário menos confuso e mais tranquilo devemos creditar ao Xandão, que com desassombro e real coragem enfrentou muralhas de distorções.

A imprensa, vimos todos, teve um papel relevante no processo. Xingada, execrada, ofendida, agredida, também sobreviveu, a despeito de todos estes ataques. Que não a vitimaram, ao contrário, fizeram com que saísse menos enfraquecida do que quando começou 2022. Vão para o lixo da história as agressões desmioladas dirigidas a jornalistas e ao bom jornalismo, como a perpetrada contra Vera Magalhães pelo presidente da República, e a mais recente, contra Rosane de Oliveira, acusada grosseiramente pelo deputado Onyx Lorenzoni. Gente como esta passa, viu, Rosane? Permanece o jornalismo responsável e talentoso que exerces desde teu tempo de jovem repórter. Seguiste sendo leal aos fatos, e tua corajosa e intransigente defesa da ciência no período mais duro da pandemia só aumentou a admiração por tua postura.

Estas bazófias passarão. Assim como vão para a lata de lixo, mas não sem antes merecerem um olhar atento do Judiciário, a agressão armada da deputada criminosa, as mentiras espalhadas aos magotes na rede social, o ambiente tóxico que pretendeu colocar a religião como co-governante da nação, o assédio eleitoral vergonhoso cometido por empresários selvagens, o uso abusivo e também criminoso de verbas públicas para tentar favorecer o governante de plantão ? a lista é longa.

O futuro novo governante já foi presidente duas vezes, sabe os erros que cometeu para não repeti-los. E não terá como não se comprometer com o estado laico, a liberdade de expressão, a defesa da ciência, a dedicação de verdade à educação, o rejuvenescimento do SUS. São quase incontáveis os desafios, e sobre eles deverá estar o atento olhar da imprensa livre e independente, alerta sempre para ajudar a combater desvios de rota. 

Confiemos, e por hoje podemos ficar com Lulu Santos e Nelson Motta e seus versos na magistral 'Como uma onda':

Nada do que foi será De novo do jeito que já foi um dia Tudo passa, tudo sempre passará

A vida vem em ondas

Como um mar Num indo e vindo infinito

Tudo que se vê não é Igual ao que a gente viu há um segundo Tudo muda o tempo todo no mundo

Não adianta fugir Nem mentir Pra si mesmo agora Há tanta vida lá fora Aqui dentro sempre Como uma onda no mar

*** Certos silêncios dão nos nervos, especialmente quando se teme que têm um objetivo inconfessável. Adolf Hitler silenciava durante o dia porque preferia se pronunciar depois das 20h, para que os jornais estrangeiros só pudessem publicar uma versão apressada e muitas vezes distorcida de suas palavras. ?Represa as emoções a ponto de explodir, depois entrega-se a ataques de choro?, registrou o escritor norte-americano John Gunther. Espera-se que não testemunhemos cena patética como esta.