Naqueles tempos

Por José Antônio Moraes de Oliveira

Aquarela de José Lutzemberg

O Coronel Picurra nunca tocava no assunto, até se afastava da roda de mate quando um ou outro tentava lembrar daqueles tempos sombrios. Ele saía, resmungando baixinho:

"- Dos caídos nas guerras, a gente não fala".

Na fazenda, todos sabiam que o Coronel, havia participado de entreveros e embates armados na fronteira. Mas era difícil para ele falar no assunto, relembrar um passado que que todos faziam questão de esquecer. Mas aqui e ali, circulavam estórias de assustar crianças, mas também umas outras, capazes de comover os mais crescidos.

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Em um galpão, na volta da estrada, morava um campeiro velho, de nome Ermenegildo, que usava uma surrada boina preta, que mal escondia seus bastos cabelos brancos. Depois de alguns tragos, o homem se encostava no balcão da venda do galego Joaquim e soltava a língua, contando coisas que deveria calar. Ele bem sabia que nas noites de inverno, com o minuano assoviando, estórias de revoluçõs eram contos de ninar para aqueles homens tristes e solitários. Nem todos acreditavam nas lorotas que ele contava, mas se regalavam quando chegava a hora de falar dos entreveros que teriam se passado ali perto, nas bandas do Camaquam. 

Sentindo que tinha a atenção da roda, Ermenegildo gastava um tempo, preparando seu palheiro com capricho, antes de contar os que eles mais gostavam - as façanhas dos piquetes que percorriam o Passo Grande, atrás dos correntinos que matavam ovelhas e carneavam vacas leiteiras. Aí, era hora de enfeitar a estória, acrescentando detalhes, como suas lembranças dos cavalarianos a galope solto pelos campos, com o Coronel Picurra, com o pala azul e branco ondulando ao vento.

Contava que nem sempre eram renegados correntinos vindos do outro lado da fronteira; às vezes eram ladrões de cavalos ou simples fugidos da cadeia. Mas que naqueles tempos, não se perdoavam pecados com a mesma facilidade de hoje. E havia um encarregado de aplicar o castigo, um certo índio renegado, forte como um touro e desalmado como ninguém.

Nesta altura, Ermenegildo fazia uma pausa, saboreando o momento e sorrindo de lado. E contava que, na maior parte das vezes, bastava o índio aplicar uma boa surra de rebenque, que deixava o coitado torto por um ano. Mas também havia um castigo pior, reservado para os ladrões de cavalos e para os que matavam vacas de cria sem usar a carne. 

***

Tempo para Ermenegildo acender seu palheiro e olhar para a ponta em brasa. 

 

" - E qual era este castigo, homem de Deus?", alguém indagava.

 

Então, com um ar teatral, o velho campeiro passava lentamente o polegar sob o queixo, da esquerda para a direita.

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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