Naqueles tempos...

Por José Antônio Moraes de Oliveira

"Que demônio benévolo é esse que me deixou envolto em sabores e perfumes?".

Charles Baudelaire.

Na Porto Alegre daqueles tempos, era uma festa sair de casa e caminhar a toa pelos bairros. As ruas eram quietas, quase desertas, com raros automóveis (que abreviávamos para "autos") sacolejando nos paralelepípedos. Havia então o rito amável das trocas de 'bons-dias' e 'boas-tardes' às pessoas  nas calçadas e janelas. E aqui e acolá, perfumes, cheiros, aromas, que nos faziam sonhar e até contavam estórias.

***

Em certos dias, o bairro era visitado por personagens curiosos  e até intrigantes. E com eles chegavam outros cheiros, sons, ruidos. Como os do gringo das verduras, que batia palmas de porta em porta, exibindo avantajados maços de cheiro-verde, manjericão, capim-cidró. Ou os do velho amolador de facas com seu apito estridente que endoidecia o cachorrinho de Dona Olga, na casa da esquina. 

Lembro que desde a primeira hora da manhã ouvíamos os sons acordando a rua - o longo apito do guarda-noturno encerrando sua vigília e o tilintar das garrafas de leite que o leiteiro Arnaldo depositava nos portões das casas. Entre meus encargos diários, o que mais dava gosto era sair para comprar pão. Eram duas as padarias do bairro - uma logo depois da segunda esquina e outra mais distante, na João Telles, quase no Bom Fim. Ficava em uma casa caiada de branco e sem letreiro na fachada. Mas dali saiam os melhores pães do bairro. 

O dono era o João Adelaide, um português do Alentejo, sempre rindo ou cantarolando um fado. E ele mesmo lidava com o forno a lenha nos fundos da casa - a primeira fornada saia às 7 horas da manhã, depois às 11 e a última, às 5 da tarde. Sempre atrasado, eu precisava correr rua abaixo para não perder a hora e já no meio do caminho, sentia o cheiro do pão quente saindo do forno. 

Aquele português era um padeiro de verdade, dos que ficam felizes ao ver os pães sumirem das prateleiras. Mas seu maior orgulho eram os pães especiais que saiam na última fornada . Eram pães típicos de Portugal, cada um mais apetitoso do que  o outro. Um dia, pão sovado, típico dos Açores, no outro, um pão de azeite, com gergelim e havia ainda um pão de chouriço, recheado com linguiça, que se vendia em minutos.

***

Mas era às 6as.feiras que saía do forno a especialidade da casa: uma broa de milho, antiga receita de família. Era temperada com azeite virgem e salpicada com erva doce e alecrim. Tinha a casca fina, dourada e crocante com um miolo que desmanchava na boca. O João Adelaide cortava grandes fatias em cima do balcão e servia aos clientes. Quem chegava primeiro, ganhava um naco de Queijo da Serra que ele recebia todos os meses da "santa terrinha".

*** 

Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

Comentários