Navegação de cabotinagem

Depois de algum tempo no cais caseiro, o poeta se prepara para zarpar. Já definiu seu curso: um dia inteiro no rio das ruas. …




















Depois de algum tempo no cais caseiro, o poeta se prepara para zarpar.
Já definiu seu curso: um dia inteiro no rio das ruas.

Seus porões estão abarrotados de novas estrofes, pois o poeta é muito produtivo. Só o lastro não muda. Para não soçobrar com a carga inédita, ele utiliza a produção mais antiga.


Na sua proa se percebe, muito bem caligrafado, um pomposo Eu. Enorme, não deixa dúvidas de qual ególatra é o timoneiro. Sua sirene soa para o sol e ele solta as amarras.


Enfunada de si mesma, a embarcação personalista alcança o esplendor do dia. Assim, em manobras que fazem parecer que ele não está à margem dos acontecimentos, singra a correnteza humana.


Ao reconhecer alguém, o poeta ruma em sua direção e atraca. Ansioso, descarrega pilhas de loas e montes de láureas pessoais. É uma abordagem difícil de se desvencilhar, os cordames se enliam na conversa rasa, a âncora já se agarrou à lapela do abordado. O interesse encalha.


O percurso do poeta segue o mapa rotineiro da sua empáfia autoral: redações, bares, praças, associações. Onde houver um evento, ele aporta. Onde existir um auditório, ele fala, fala, fala e fala do poeta consagrado que é. Nisso é inspirado.


Sua poesia, que às vezes não escapa de ser genuína, tem portos variados. Ele a entrega como encomenda a mocinhas que não encomendaram nada. Troca sonetos por sonos a dois. Despeja toneladas dos mesmos versos em silos virtuais, como grãos de safra única. E recobre mesas boêmias com releases e recortes de sua bem-sucedida auto-história.


Vez em quando sua poesia brilha, como luzes de orientação no alto do convés. É quando, nas madrugadas, a neblina do exibicionismo se dissipa por instantes. Aí, alguma linha ganha a nitidez da autenticidade. Não foi escrita para impressionar academias, ganhar prêmios, arrumar companhia. Saiu à revelia da sua natureza.


Já no ancoradouro doméstico, o poeta volta a escrever, premeditadamente. À paz universal, aos amores, à vida. Enquanto rima, antegoza a próxima viagem em busca de glórias. A vaidade, jamais desinflada, é a sua bóia de salvação. Sem ela, o ser humano dentro desse cabotino afunda.






Vim a conhecer as deliciosas Greguerías (algo como confusa algaravia, situação onde não se perceberia o real sentido das palavras, ou, pela indefinição auditiva reinante, se criariam outros sentidos para elas) graças ao Dicionário Universal de Citações, de Paulo Rónai, o saudoso catador de tesouros linguísticos. Em poucas frases fui logo conquistado: Ramón Gómez de la Serna, escritor español (Madrid 1888 - Buenos Aires 1963), é um mestre em ver as coisas por ângulos inesperados. Um artista que entorta conceitos e enche o leitor de prazer com suas visualizações líricas, absurdas, engraçadas, um cicerone do descondicionamento. E as Greguerías (metáfora + humor, em sua própria definição) nem dele seriam, diz Ramón de La Serna. São formas curtas de expressão de idéias, como os aforismos, que já existiam antes e ele adorava compilar de outros autores, a pinçar de livros e revistas. Mais brilhante que todos, produziu e popularizou as Greguerías a vida toda, sem parar, a partir de 1910. Acabou por influenciar outros criadores, como Jacques Prevert e até Mário Quintana virou um greguerista de mão cheia, e Millôr Fernandes, que já fez de tudo, também não deixou de fazer as suas. Para escapar da guerra civil espanhola, Ramón de La Serna imigrou para Buenos Aires em 1936. Viveu lá até não mais viver, em1963. Para ser lembrado, deixou dezenas de novelas, romances e outras obras. Mas se tornou memorável através das Greguerías. Como estas a seguir, selecionadas ao acaso do melhor livro delas, das Ediciones Cátedra/Letras Hispánicas:

O trem parece o buscapé da paisagem.


O orador é um instrumento de sopro que toca sozinho.


Dicionário quer dizer milionário em palavras.


Nostalgia - nevralgia das recordações.


O uísque é a arnica do estômago.


Da neve caída nos lagos nascem os cisnes.


O queijo Roquefort tem gangrena.


O crocodilo é uma maleta que viaja por conta própria.


Existem melões que parecem queijos, mas são melões.


As vacas aprendem geografia olhando as manchas umas das outras.


A timidez é como um traje malfeito.


O telefone é o despertador dos acordados.


A idiossincrasia é uma doença sem especialista.


A gasolina é o incenso da civilização.


O carrasco é igual ao antropófago: os dois matam para comer.


As camélias são mais condecorações que flores.


Os arcos de triunfo são elefantes petrificados.


O beijo é a fome de imortalidade.


As gaivotas nasceram dos lenços que dizem adeus nos portos.


A girafa é uma grua que come ervas. Ou um cavalo alongado pela curiosidade.


Os cocos têm dentro água de oásis.


A lagartixa é o broche das paredes.


O epitáfio é o último cartão de visita feito para um homem


Para saber mais do genial Ramón Gómez de la Serna, este site é o melhor começo: http://www.ramongomezdelaserna.net


Em homenagem ao criador, e inspirado no meu atual livro de cabeceira, aí vão algumas tentativas de captar o espírito da coisa:

Quando a pia engasga, recebe respiração boca a boca do desentupidor.


Os fósforos queimados são os fósseis mais rápidos e breves da era moderna.


A peteca é a forma mais lúdica de taxidermia.


Após as refeições, a aljava do arqueiro é o paliteiro.


O dedal faz do dedo uma ilha, cercada de unha por todos os lados.


O menino come gelatina sortida como quem saboreia um caleidoscópio quebrado.


No anzol, a minhoca deixa de ser um invertebrado.


Para a palmeira, uma brisa basta: ela tem seus próprios leques.


As esporas são pequenos arados a lavrar as ancas do cavalo.


Diante das vassouras e das escovas, o espanador se pavoneia.


Com suas agulhas gigantes, os esgrimistas fazem tricô em pleno ar.


À espera de conserto, a torneira é uma ampulheta sonora.


A fornalha é a única boca onde o carvão vegetal não alivia a azia.


O joanete é a tentativa do pé produzir uma pérola.


Na ferrovia, a floresta é crucificada nos trilhos.


Ao errar de casa, um botão troca o endereço dos demais.


Para o incêndio, a mangueira é a mais perigosa serpente que existe.

Autor
Fraga. Jornalista e humorista, editor de antologias e curador de exposições de humor. Colunista do jornal Extra Classe.

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