No tempo do Onça
José Antônio Moraes de Oliveira
"Veja ilustre passageiro o belo tipo faceiro
que o senhor tem a seu lado..."
Cartaz nos bondes da Cia.Carris Porto Alegrense.
A última vez que o encontrei - e já faz bastante tempo - foi no Centro Velho de Porto Alegre. Ele caminhava pela rua da Praia, olhando para os lados, como se procurasse algo que não mais existia. Estacou em uma esquina, balançando a cabeça e seguiu em direção à Praça da Alfândega. Andava rápido, se esgueirando entre o vai-e-vem das pessoas e fugindo do assédio dos vendedores ambulantes. Na praça, foi até um banco à sombra de uma grande paineira. Limpou o assento com um lenço branco. E mesmo de longe, deu para ver que ao sentar, deu um suspiro de alívio.
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Joachim de Barcellos era um homem interessante, um tipo raro que não se encontra facilmente. Não dava para saber sua idade - devia estar acima dos 70, sem chegar aos 80, mas se movimentava com agilidade e a leveza de um bailarino.
Além disso, era dono de uma memória inacreditável. Uma memorável entrevista que deu para o Correio do Povo havia sido assunto por dias no Largo dos Medeiros. Ele se declarava um homem à antiga, herdeiro de tempos que se foram e das coisas que a cidade perdera. Mas não revelava nenhuma amargura, saboreando detalhes e minúcias dos dias bem-vividos:
"Eu pertenço a um tempo que não volta mais. Do tempo em que xícara se escrevia com ceagá. Conforme meu amigo Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly, nós pertencemos à geração do 'Tempo do Onça' - e não me pergunte quem era 'O Onça'.
Era uma época em que as pessas achavam tempo para ler, pensar e conversar. Existiam poucas máquinas, pois quase tudo se fabricava manualmente - e as pessoas tinham orgulho de trabalhar com as mãos.
Quando Apparício e eu saímos do Rio Grande e fomos para o Rio de Janeiro, ele adotou o nome de Barão de Itararé, a batalha que não houve. Descíamos de Santa Tereza no estribo dos bondes abertos, usando chapéus Ramenzoni para tomar chá na Casa Colombo".
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Joachim de Barcellos fez uma pausa, como viajando no tempo e na geografia de sua vida. Apontou para as pedras portuguesas do calçamento, lamentando que o asfalto acabaria por cobrir todas as ruas de Porto Alegre. Arrumou o friso das calças de risca-de-giz e prosseguiu:
"Naquele tempo, telefone era sempre preto e a geladeira era sempre branca. Quando chegava a tosse, tomava-se o xarope São João. Na hora da indigestão, leite de magnésia ou uma pitada de bicarbonato. Dor de cabeça ou enxaqueca? Cafiaspirina resolvia o problema. No rádio, ouvíamos discursos do Gegê ou a PRK-3O na Rádio Nacional.
Quando saímos do O Globo, nosso hábito era uma parada no botequim do Anselmo, na rua do Ouvidor, para uns copos de cerveja Supimpa ou Bohemia. Comprávamos cigarros a granel, sempre das marcas Elmo, Yolanda ou Liberty. Então, saímos flanando até a Cinelândia, para ver filmes em preto-e-branco do Carlitos ou da Greta Garbo".
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Mais uma longa pausa. Joachim de Barcellos olhou para o alto, para a paineira centenária que cobria a praça com sua sombra:
"- Enfim, como esta paineira, seguimos em frente, apesar de tudo...Como recitava nosso poeta, sentado em um banco desses, vamos jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas."
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