O amor liberta

O mundo é uma escola, a vida é um circo e amor, palavra que liberta, já sentenciava, anos atrás, o profeta Gentileza, cujo nome …

O mundo é uma escola, a vida é um circo e amor, palavra que liberta, já sentenciava, anos atrás, o profeta Gentileza, cujo nome verdadeiro era José Datrino, e a quem já fiz referência em coluna anterior. Palavras simples, sem amparo em nenhuma tese de filosofia, mas que perambulam em todas as nossas atitudes rotineiras. Afinal, os últimos acontecimentos têm nos ensinado muito, mesmo para os que não freqüentam mais os bancos escolares, dependendo dos fatos, roupas de palhaço ou de equilibristas nos caem muito bem, e o amor prossegue, no ranking de tudo que se respira, que se move, que nos acarinha, que nos proporciona, que nos alimenta.


Guardadas as devidas diferenças com o Katrina, aprendi muito sobre o valor da vida ao fazer parte da cobertura dos ventos fortes que assolaram o litoral norte gaúcho. E isso não estava escrito em nenhum livro de história, geografia ou biologia. Eu fui, caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento, nada no bolso e nas mãos, testemunhar as casas que haviam sido derrubadas pela força do vento (rajadas superiores a 90 quilômetros/hora) na praia de Cidreira. Muitas. Os moradores desolados ao ver as telhas compradas com o suor de tanta economia no chão, quebradas, sem outra serventia.


Mas, como quem se veste de equilibrista no intrínseco circo da vida, eles não deixavam passar esse desconsolo para os filhos, crianças que surgiram do nada, em bandos, quando o carro da reportagem estacionou. Meninos e meninas de todos os tamanhos, cores e sorrisos, que correram para contar que estavam pesquisando qual a casa menos destruída pela ação do vento para abrigar seus sonos noturnos. Com uma alegria que beirava, em momentos, a histeria, eles queriam saber em qual televisão iria passar a história deles, no intervalo de qual novela a mãe deles, que só lembrou de proteger os filhos na hora do vento, iria aparecer.


No circo da vida, lá estava no picadeiro, reinando absoluto, o amor. De todas as maneiras que há de amar, ele sempre é o protagonista. Pode parecer piegas. E se realmente soar piegas, assumo meu mico. Quem não tem, bem no fundo, um lado mais romântico que atire a primeira pedra. Na hora do vendaval, a mãe cuidou unicamente dos seus rebentos, o material ficou para outro capítulo. Na hora de redigir a matéria, com muito amor, apesar da corrida deste tipo de cobertura, não conseguia apagar da mente os rostinhos das crianças e todo o amor que elas devotavam por aquela mãe.


E o digital do relógio marcava 21h. Quando lembrei que também pensei, em primeiro lugar, na minha rebenta, assim que os ventos da redação sopraram. Ao saber que iria para o litoral, sem hora certa de retorno, providenciei que alguém a buscasse no colégio. Telefonei imediatamente para casa, a fim de saber se ela estava bem guardada, de banho tomado, alimentada, e avisei que em breve estaria chegando com planos para o final de semana. Os ventos que desvastaram as casas escolheram uma sexta-feira para a sua ação. Como se fosse possível escolher a data ideal para derrubar casas e sonhos.


No sábado, ao passear com a minha filha nos shoppings da cidade, enquanto suas mãozinhas frágeis folheavam pedaços de literatura na sua livraria preferida, fiquei inundada de amor pelos últimos fatos narrados. O amor que tive ao redigir a matéria lembrando das crianças desabrigadas. O amor que senti ao me preocupar com a minha filha no final do expediente. O amor que recebi ao ganhar um presente de minha mãe. Como dizia Fernando Pessoa em "Autopsicografia", e assim, nas calhas de roda, gira, a entreter a razão, esse comboio de corda que se chama o coração.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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