O bicho era um menino

A pequena bolsa a tiracolo, escolhida para me acompanhar no passeio pelas ruas centrais de Porto Alegre, num ritual que se repete mensalmente, indicava …

A pequena bolsa a tiracolo, escolhida para me acompanhar no passeio pelas ruas centrais de Porto Alegre, num ritual que se repete mensalmente, indicava a intenção de cumprir o compromisso rapidamente e voltar para casa, quem sabe a tempo de acompanhar uma avant-première do destino do senador Renan Calheiros. Mas, como já dizia o velho ditado, de boas intenções o inferno tá cheio, os meus planos na terça-feira à tarde fugiram totalmente de controle. No final da excursão por uma das rotas do mapa da cidade, lembrei do poema de Mário Quintana e retornei para meu canto, reconhecendo na anatomia de Porto Alegre, algumas partes que sempre insisto em não apalpar.


Senti uma dor infinita ao deixar a esquina da Borges de Medeiros com a Riachuelo, após aguardar uns 20 minutos numa fila, debaixo do sol e derretendo no calor de mais de 30 graus, e ouvir da atendente da Farmácia de Medicamentos Especiais que o meu remédio está em falta pelo segundo mês consecutivo. Fazer o quê? Interromper o tratamento e nunca mais voltar a trabalhar? Esticar mais a licença-saúde? Nem pensar. A solução foi apelar ao cheque especial, pré-datado, com desconto para plano de saúde, carteira de sindicalizado e zilhões de condições. A sacolinha plástica surrada dentro da bolsa, que acomodaria o remédio fornecido pelo Governo do Estado, serviu para guardar o medicamento comprado.


Desci a Borges de Medeiros no meio daquele turbilhão de ônibus,  lotações e pedrestes que não se respeitam (quando é que isso vai mudar, pensei), em direção à Andrade Neves, reclamando da má sorte  (não falo aquela palavra? não adianta) em não conseguir o medicamento, que é super caro, por dois meses consecutivos. Ali, quando a Borges se torna uma esquina esquisita e infiel porque namora, às vezes, a Andrade Neves, outras a Salgado Filho e, de quebra, dá umas piscadas para a Andradas mais abaixo, decidi percorrer a Travessa Acelino de Carvalho, que deveria atender, sonho de administrações anteriores, pelo nome de Rua 24 Horas.


Uns estranhos barulhos no estômago lembraram-me que, na pressa de buscar o remédio na Farmácia de Medicamentos Especiais, deixara de almoçar e, naquele horário, no meio da tarde, seria difícil encontrar um local com alimentação adequada à minha dieta. Resolvi entrar numa lancheria qualquer e comprei uns dois chocolates pequenos de soja diet, suficientes para sossegar meu estômago até chegar em casa e tratá-lo melhor. Foi quando avistei, na frente da lancheria, uma lotérica e resolvi apostar na sorte. Afinal, acabara de ficar definitivamente pendurada no cheque especial, a Mega prometia um bom prêmio e eu tinha sonhado com uma pessoa que aprontara comigo, ideal para jogar no bicho.


Como toda a torcida do Grêmio (hehehe) teve a mesma idéia, enfrentei uma nova fila (menor que a da Farmácia de Medicamentos) e, enquanto aguardava, puxei da bolsa um chocolate diet para aliviar a fome. Saboreando meu energético de soja, resmunguei baixinho da falta do remédio, de não ter dedicado tempo necessário ao almoço, de não ter pensado no imprevisto e passear com a bolsa sem meus mantimentos essenciais (remédios, água de coco, iogurte de soja, etc?). Assim, tive que transferir para outro dia uma visita que pensei fazer à Redação do Correio do Povo para matar as saudades e à Associação Riograndense de Imprensa (ARI) e pegar um material que havia solicitado.


Inerte nos meus pensamentos, fui acordada pelo moleque moreno, de cabelo preto mal aparado, olhos escuros de dor, não mais do que nove anos, meleca escorrendo pelo nariz, que pedia, insistentemente, se eu não tinha um dinheiro para ele comprar alguma coisa, creio que falou em pão, leite, não tenho certeza. Ato contínuo, disse sem pestanejar que não tinha nenhum trocadinho e já virei o rosto para não deixar que nenhum sentimento mais emotivo se instalasse. O mesmo pedido, talvez com alguma variação, o menino fez aos outros companheiros de fila na lotérica. Ninguém ficou sensibilizado pela sua fome. Nem mesmo quando ele, avidamente, pegou o papel do chocolate de soja do lixo e começou a lambê-lo.


O poeta, Manuel Bandeira, com sua habilidade, narrou situação semelhante no famoso poema "O Bicho". Dizia: "Na imundície do pátio, catando comida entre os detritos, quando achava alguma coisa? engolia com voracidade. O bicho não era um cão, não era um gato, não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem". Após jogar uns trocados na Mega, lembrei do poema de Bandeira e desisti de apostar no jogo do bicho, onde iria lançar a sorte no cachorro (que é o melhor amigo do homem, mas o do meu sonho tinha feito algumas cachorradas). Ao sair da lotérica, deixei nas mãos sujas do moleque uns poucos reais, o outro chocolate de soja e uma caixa de chiclet diet.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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