O mestre dos gênios ou o complexo de rei na barriga

Ao assistir a O mestre dos gênios, de Michael Grandage, me lembrei o tempo todo de Luis Buñuel. Nenhuma semelhança entre os diretores, pelo contrário. É que não me saiu da cabeça uma observação do velho anjo exterminador: a nação que tem poder, impõe até seus autores de segunda. Quem leria Hemingway, por exemplo, se ele tivesse nascido em Assunção, no Paraguai?

O filme tem ótimos personagens, mas que são apenas apresentados - eles agem pouco. O diretor gasta um tempo enorme na embrulhada da edição do texto de Thomas Wolfe: os cortes na verborragia e nas metáforas cafonas. As fraquezas do escritor ficam evidentes, os exemplos são mortais, mas seu gênio não passa de uma afirmação. É o que se chama argumento de autoridade.

Como não li Thomas Wolfe, paro por aqui. Acrescento apenas que não pretendo ler - os longos trechos citados não me deixaram nenhum pouco curioso, sem falar que reluto em ler autores que podem ter três páginas cortadas apenas pra uma frase. Pior, que ainda precisam de ajuda pra chegar a essa frase. As bibliotecas estão cheias de velhos clássicos de gênio comprovado, e não terei tempo de ler todos, talvez nem a metade.

Me enchi com a propaganda embutida desde o título do filme. Várias vezes vemos a prateleira do editor com seus gênios: Hemingway, Fitzgerald e, espera aí, deixa eu olhar melhor, sim, Hemingway e Fitzgerald, Fitzgerald e Hemingway.

Não é só Buñuel que menospreza Hemingway. Críticos como Edmund Wilson e Gore Vidal o detonam. No máximo salvam alguns contos e, com grande boa vontade, O sol também se levanta. O resto é frouxo, enjambrado, muitas vezes apenas fantasias de um adolescente violento. Quer dizer, Buñuel foi quase que uma tia pro Hemingway.

E Fitzgerald quem é, fora O grande Gatsby? Na maior parte, continhos pra revistas de grande circulação. Como nota Vidal, um autor popular foi transformado em grande autor pelos professores das universidades que lucram até com a lista de compras que ele deixou num papel grudado na geladeira. É sério isso. Foi publicado um livro de anotações de Fitzgerald que se anunciou como uma Bíblia para escritores: se você não o ler, não pode escrever. Alguns exemplos dado por Vidal no ensaio "O caso F. Scott Fitzgerald", no livro De fato e de ficção: "375. Vivamos todos juntos; 1443. As notificações de reprovação; 1463. Lembrança de dar uma mijada na noite de formatura; 1514. Tira casaco no teatro". Vidal pode estar de sacanagem, claro, pinçando o que havia de pior. Mas ele analisa reflexões sérias - e o que vemos é apenas a indigência intelectual de Fitzgerald.

Na falta de novos Edgar Allan Poe, Mark Twain e Melville, é preciso inventar. Os leitores que se lixem.

Nelson Rodrigues detectou no Bananão o tal complexo de vira-lata. Somos uns merdas em tudo, nos estranjas é que sabem fazer as coisas. Mas quem vai falar do complexo de rei na barriga dos norte-americanos? A coisa vai a um ridículo tão grande que vi num filme um personagem criticando a culinária francesa - manteiga demais - e enaltecendo o cachorro-quente.

Quer saber? Se morrerem todos de obesidade mórbida, bem feito. No sentido espiritual também, claro.

As próximas notinhas são antigas, mas recupero aqui porque têm conexão com o assunto e porque devemos peneirar a América, pra ficarmos apenas com o que tem de bom.

Mazelas gringas

Alberto Manguel, em artigo sobre Percival Everett, em 'El País': "Não é de estranhar que um dos mais audazes, originais e inteligentes escritores norte-americanos de nossa época não seja devidamente consagrado em seu próprio país: nos Estados Unidos, Percival Everett é quase um desconhecido. Os estragos causados pelos conglomerados editoriais e as vastas cadeias de livrarias, tentativas de transformar o livro num fugaz produto de consumo, impossibilitaram o reconhecimento de autênticos talentos literários e condenaram os leitores da pátria de Faulkner aos minúsculos méritos de um Jonathan Franzen ou às obscenidades de um Brett Easton Ellis. Oficinas literárias que reduzem o romance a supostas fórmulas mágicas, 'editors' que podam e maquilam os manuscritos conforme o gosto comercial do momento, distribuidores analfabetos que decidem quais livros merecem ser publicados e quais não, suplementos literários cada vez mais curtos e burros fizeram com que a literatura norte-americana seja hoje a mais vendida e a mais traduzida no mundo inteiro, e também a menos interessante e a mais efêmera".

O diabo, meus caros, é que nós estamos copiando direitinho esse esquema. Como se não bastasse o consumo de hambúrguer, refrigerante e as aventuras de Paris Hilton e Charlie Sheen.

Máquina de fazer guerra

Segundo Gore Vidal, em Sonhando a guerra: sangue por petróleo e a junta Cheney-Bush (Nova Fronteira, 2002, com o luxo de um prefácio de Luis Fernando Verissimo), os Estados Unidos são uma máquina de fazer guerra - desde 1947-48 até 2000 tinham entrado em mais de 250 conflitos militares, sem contar as encrencas arrumadas pela CIA, como a derrubada de Allende no Chile. É um estado dominado por corporações que lidam com armas, energia e informação (ou desinformação, dado o nível de distorções e mentiras espalhadas), e que possui um único partido dividido em duas alas que se alternam no emprego de obedecer a essas corporações, mesmo assim fraudando mais de uma eleição presidencial.

Em Sangue errante (Record, 2009), James Ellroy pinta um Estados Unidos chafurdando em sangue, corrupção, preconceitos loucos e uma total futilidade. Onde fica o famoso modo de vida americano, a famosa democracia? Se os Estados Unidos são metade do que Vidal e Ellroy afirmam, trata-se da nação mais escrota, usando descaradamente métodos que os romanos, nos bons tempos de seu império, tratavam de disfarçar com alegações jurídicas.

Miss simpatia americana

Vocês leram sobre a declaração de Maureen Chao, vice-cônsul dos Estados Unidos no estado indiano de Tamil Nadu? Ela disse às crianças numa escola que, depois de ficar sem tomar banho por 72 horas, a pele dela tinha ficado "suja e escura como a de vocês". Mais tarde os gringos pediram desculpas dizendo que Maureen Chao tinha sido inapropriada. Acham que isso basta.

Não vi nenhum americano, depois do ataque às torres gêmeas, dizendo: "Depois dessas explosões, nossas vítimas ficaram tão mortas e destripadas como as de vocês depois de nossos ataques". Ou melhor, vi sim: Gore Vidal e Noan Chomsky. Naturalmente foram considerados inapropriados por outros compatriotas.

Diálogo

Charlie Chaplin (meio irônico): "No fundo, os Estados Unidos são bons".

Douglas Fairbanks (sério): "Pelo contrário, os Estados Unidos são bons na superfície. No fundo são um horror".

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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