O meu e o nosso

O meu e o nosso

Quando os homens começaram a se fixar na terra e se transformaram de caçadores em agricultores, começou também a divisão entre os que, por serem mais fortes, mais inteligentes ou que tiveram mais sorte, ficaram com as melhores terras e prosperarem, enquanto outros - a maioria - fracassaram.

Os que prosperaram trataram rapidamente de garantir seu poder, organizando as primeiras forças policiais para defender o que consideravam somente seu e por extensão, de suas famílias e de seus filhos. A partir daí, passando pelos vários ciclos econômicos em que viveu a humanidade, do escravismo ao capitalismo, o grande problema foi sempre manter passivos os excluídos dos bens materiais que iam sendo gerados.

A partir de determinado momento, os proprietários se deram conta de que a coerção policial seria incapaz de manter incólume para sempre essa ordem injusta. Era preciso convencer os excluídos de que isso acontecia por uma razão maior, que era independente da vontade das pessoas.

Durante séculos e até hoje, a religião serviu para isso. O ópio do povo, como definiria mais tarde com precisão Karl Marx. Mas, o advento do capitalismo trouxe com ele também o seu coveiro, o proletário, mais uma vez lembrando Marx. É dele também a justificativa ética para o que antes era apenas a cobiça pelos bens do próximo.

É preciso dividir entre todos o que alguns pensam que é só seu. O Meu precisava ser substituído pelo Nosso. 

O século XX viu essa verdade transformada em bandeira de luta de milhões de pessoas no mundo inteiro, culminando com a revolução de 1917, na Rússia. Não bastavam agora para convencer os excluídos a aceitar a exclusão, as forças de coerção de policial, ou o consolo da religião.

Então, como dizia a aquele velho ditado: "É preciso dar os anéis para não perder os dedos", foram surgindo os "estados do bem estar social",com limites de exploração nas horas trabalhadas, mais férias, aposentadorias e outros direitos. Mas o exemplo da Revolução Russa, com o surgimento da União Soviética, ainda assombrava o mundo. Era preciso desconstruí-la na mente dos trabalhadores, para os quais ela foi feita, principalmente depois da Segunda Guerra, quando, praticamente sozinha, derrotou a wehrmacht nazista, a maior máquina de guerra jamais montada no mundo.

Começou, então, um extraordinário esforço de comunicação, capitaneado pelos Estados Unidos para vender, principalmente através do cinema, para o mundo inteiro o chamado 'american way of life', basicamente a defesa de um individualismo feroz, em que os mais inteligentes e hábeis são sempre premiados e os perdedores, a maioria, são perdedores por sua exclusiva culpa.

Nesses últimos anos, estamos assistindo a esse esforço de comunicação romper todas as barreiras éticas que ainda existiam e se tornar cada vez mais poderoso, com a utilização das redes sociais para impor formas de governo e governantes comprometidos a manter a maioria da população excluída dos bens que a tecnologia criou para todos.

No Netflix e no Youtube há dois documentários - 'Hackeando a Privacidade' e 'Driblando a Democracia' que, se referindo aos mesmos personagens - Robert  Mercer e Steve Bonnon - e às mesmas empresas - Cambridge Analytic e Facebook - mostram com detalhes como foram fraudadas as eleições americanas em benefício de Trump, nos Estados Unidos, e o Brexit, na Inglaterra, e, mais adiante, na eleição de Bolsonaro no Brasil.

O processo se sofisticou. A tentativa de conquistar a adesão das pessoas, feitas no passado através da exposição de pseudos valores de uma sociedade - a democracia capitalista - em  oposição à "ditadura" comunista - hoje é feita de uma maneira em que o eleitor/consumidor está completamente indefeso, vítima do que poderíamos chamar de algoritmos do mal. 

Ano que vem teremos eleições municipais no Brasil e, certamente, ainda que em menor escala, serão também corrompidas por esse processo espúrio de influência sobre a mente dos eleitores. Seria trágico que os partidos de esquerda participassem desse jogo, como se fosse um processo eleitoral confiável, (como parece que vai acontecer, a acreditar o que dizem seus líderes a começar por Lula), em vez de aproveitar o tempo na mídia para denunciar toda essa farsa.

Autor
Formado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), foi jornalista nos veículos Última Hora, Revista Manchete, Jornal do Comércio e TV Piratini. Como publicitário, atuou nas agências Standard, Marca, Módulo, MPM e Símbolo. Acumula ainda experiência como professor universitário na área de Comunicação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e na Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos). É autor dos livros 'Raul', 'Crime na Madrugada', 'De Quatro', 'Tudo que Você NÃO Deve Fazer para Ganhar Dinheiro na Propaganda', 'Tudo Começou em 1964', 'Brizola e Eu' e 'Aconteceu em...', que traz crônicas de viagens, publicadas originalmente em Coletiva.net. E-mail para contato: [email protected]

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